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Descrição de chapéu Tragédia em Brumadinho

Réplica: Se a Vale perde valor, a sociedade também perde

Advogado responde a texto sobre a responsabilização de acionistas e diretores

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Francisco Rohan de Lima

[resumo] Ex-diretor jurídico da Vale responde a artigo publicado em 3 de março na Ilustríssima sobre a relação de acionistas e diretores da empresa com desastres como o de Brumadinho, ocorrido no final de janeiro.

Os professores Rodrigo Salles Pereira dos Santos e Bruno Milanez, o primeiro da UFRJ e o segundo da UFJF, produziram um artigo muito interessante denominado “A culpa é da Vale. Mas o que é a Vale?”, com o intrigante subtítulo “Autores discutem desresponsabilização dos acionistas da empresa no desastre de Brumadinho”, em 3 de março de 2019.

Em síntese, os ilustres professores nos levam a pensar que, não satisfeitos com a eventual responsabilização criminal dos administradores e indenizações de natureza civil que a empresa venha a suportar, gostariam de atingir o bolso dos que investiram na companhia. Mais ainda do que estes já foram atingidos pelo mercado.

Até 1º de marco os acionistas haviam perdido R$ 50 bilhões, segundo a Bloomberg. Os professores parecem frustrados porque, apesar da enorme destruição de valor sofrida pela empresa, esta, mesmo perdendo parcialmente o grau de investimento, se apresenta estruturalmente —isto é, operacional, societária e financeiramente— tão sólida que é capaz de assegurar resultados positivos no tempo para aqueles que se empenharam em tomar o risco de investir no seu capital social.

O artigo não diz, mas nos leva a pensar que a preferência dos autores seria que ocorresse uma perda tão grande à empresa que afetasse ainda mais profunda e irreversivelmente os investidores ou que esses fossem chamados diretamente a responder pela tragédia. Note-se que aos professores nem ocorre levar em conta que o patrimônio dos investidores não pode ser atingido além do valor que ele próprio investiu na companhia, uma construção secular da humanidade, ou pensar em distinguir dentre os investidores aqueles que são também controladores da companhia.

A certo ponto do artigo, seus autores, entre surpreendidos ou perplexos, registram que o valor de mercado das ações da Vale, após queda significativa diante da notícia do desastre, esboçou reação positiva em seguida diante das medidas adotadas pelos administradores da empresa. Destaco o trecho: "Aparentemente, dispositivos de disciplinamento ético de corporações, como listas de investimentos recomendados e/ou proibidos, têm impacto limitado em um negócio no qual as margens de lucro são extraordinárias, em particular para corporações que controlam reservas de classe mundial e são agentes centrais na rede global de produção mineral".

Ouço um tom de lamento no discurso. Indago se o ideal para os professores seria, talvez, que os mecanismos de repressão ao erro ou omissão fossem tão drásticos que arruinassem os dirigentes, os acionistas controladores, os acionistas minoritários, os empregados, os fornecedores, os governos federal, estaduais e municipais, os financiadores e os clientes da Vale? Sim, porque todos se beneficiam de uma empresa como a Vale. Se a empresa perde valor, a sociedade também perde. Evito comparar com perdas de vidas porque não são elementos comparáveis e para não me afastar do que importa no momento.

Prosseguem os autores afirmando que alguns analistas mais cautelosos receiam que a queda da produção operacional da Vale poderia ser substituída no mercado pela produção das gigantes BHP e Rio Tinto. Porém voltam a lamentar que, mesmo a apreciação desse cenário “pessimista” –as aspas irônicas são dos professores– "não parece suficiente para afastar os investidores uma vez que instrumentos jurídicos específicos vêm criando uma sensação difusa de que os ganhos estão garantidos sob quaisquer circunstâncias".

Esse é o preâmbulo para o texto apostar no que chama de aliança tácita –aqui não há aspas no texto, eles falam a sério– entre acionistas e a diretoria executiva da companhia. Por esse ângulo algo cínico, os acionistas postulariam judicialmente indenização por perdas causadas pela má gestão e os diretores executivos, ameaçados por ações coletivas, assegurariam o pagamento de tais indenizações. Isto seria o reflexo do que os autores batizam de “confiança sistêmica”; as aspas são minhas, com ironia.

Descontada a irrecusável elegância do texto, trata-se de um ataque grosseiro e simplista, que reduz uma complexa estrutura jurídica, societária e financeira, como a da Vale, construída ao longo de 70 anos e amparada na legislação de mercados de capitais, inclusive sob a lei norte-americana, a um jogo viciado em que os conflitos de interesses não existem, bem como não existe o papel e a responsabilidade individual e colegiada dos membros do conselho de administração, o conselho fiscal é ignorado, a CVM brasileira é inoperante e a norte americana SEC é desprezada.

Sem falar no aparato judicial do Brasil e dos EUA, estes desaparecem no raciocínio do texto, que aposta num grande conchavo global para tornar desprezível o risco dos investidores de curto prazo na mineração, vista essencialmente como insustentável. Devemos abolir a mineração? Os autores não se atrevem a dizer que sim. A eles basta insinuar.

Os professores ignoram ou fingem ignorar o papel do conselho de administração da Vale, que detém a competência de aprovar negociações e transações desse tipo. Recomendo a urgente leitura do artigo 14 do estatuto social da companhia. O conselho tem a maioria de seus membros eleitos pelos acionistas controladores e os interesses dos controladores se opõem frontalmente aos interesses de minoritários em busca de reparação. Todo o sistema societário de "checks & balances" construído historicamente já se mostrou capaz de regular assunto dessa natureza. O que poderia ser pior, desconhecer o tema ou fingir que o ignora?

Não sei se entendi bem, mas segundo os autores, a mineração não teria solução, pois estaria sujeita a “uma estrutura assimétrica de alocação de poder, na qual custos, impactos e responsabilidades são empurrados progressivamente para a base desta distribuição, em favor da concentração do valor extraído em suas operações pelos agentes mais móveis e poderosos”. Aqui há um tanto de obscuridade.

A qual base os professores se referem? À base de acionistas? À base da pirâmide social? Deve ser isso. Os custos e riscos seriam transferidos para a base da pirâmide social? Estariam se referindo à comunidade afetada em Brumadinho e ao longo dos rios afetados pela tragédia? Estaríamos a falar de externalidades? Se for assim, esse ponto foi tratado muito superficialmente em artigo tão bem elaborado. Deveríamos voltar a Ronald Coase (1910-2013) e revisar o seu texto seminal, ainda não superado, "The Problem of Social Cost" (Journal Laws of Economics, 1960)? Haverá algo de leviano nessa leveza, nesse raspão, num assunto que poderia desviar o foco central do ataque à Vale, às corporações, à atividade minerária, ao sistema capitalista?

Os articulistas finalizam afirmando que “a relação acionistas-executivos é o pilar central dessa rede, de modo que desastres como os provocados pela Samarco e pela Vale continuam a ser vistos como episódios gerenciáveis, quando, em realidade, jogam luz sobre a armadilha de um modo de organização da atividade empresarial em que nada pode mudar”. Estivessem os autores interessados em tornar efetivos os mecanismos legais que podem responsabilizar a companhia e proporcionar indenizações justas a quem sofreu perdas irreparáveis ou contribuir para melhorar os sistemas de comunicação e governança corporativos, além da engenharia mais segura para a atividade minerária e/ou para as comunidades que dela dependem, o texto seria outro. Mas é preciso coragem intelectual para ser acusado de colaborador ou lacaio do capital explorador. 

Trata-se, no artigo, a partir de seu título, de reiterar que a culpa é da Vale e de perguntar o que é a Vale. E responder, simplesmente, que a Vale são seus acionistas, acumpliciados com seus executivos, com os membros do conselho de administração e fiscal olhando para o outro lado. Em verdade, o texto é um ataque às corporações. Qualquer empresa. A todas as empresas. Se a Vale, com um regime de governança corporativa até então considerado excepcional, com títulos emitidos e regulados no mais fiscalizado mercado de capitais do planeta, é identificada como um conluio “acionistas-executivos”, o que pensar das demais? O artigo não diz, mas são iguais ou em nível de governança inferior ao da Vale, portanto, é lógico concluir, que todas fazem, ou buscam fazer, parte do regime de “confiança sistêmica”, uma “armadilha”, “um modo de organização em que nada pode mudar”.

O texto revela-se, assim, maniqueísta e aproveita-se da situação da Vale para atacar a generalidade das corporações e para agredir, sinuosamente e sem fundamento, a legislação societária e de mercado de capitais em vigor. A notável capacidade da companhia para suportar o revés e poder honrar suas responsabilidades civis em Brumadinho, no melhor cenário minimizando o impacto sobre prejudicados, sejam eles as vidas perdidas ou os investidores (o que ainda não e possível avaliar), é estranhamente mal compreendida e, a meu ver, precariamente analisada pelos professores Santos e Milanez.

O seu enfoque termina por mostrar o ânimo contra uma atividade empresarial legítima e contra todo um sistema, sem que apresentem ou contribuam para solução melhor. Mostra-se uma fantástica teoria da conspiração onde poderosos executivos são protegidos pelo sistema econômico e jurídico. Esse falso dilema maniqueísta, onde a Terra é plana, ficaria melhor numa caricatura de história em quadrinhos.

De qualquer modo, o artigo foi publicado no domingo (3/3), mas chegou atrasado. Foi superado pelos fatos da véspera. O jornal nos informa, no mesmo domingo, que parte dos executivos da Vale já se afastou da gestão da empresa. Sem saber, contribuíram para esvaziar o que ainda restava de ar no balão de ensaio conspirativo de Santos e Milanez.


Francisco Rohan de Lima é advogado, foi advogado e diretor jurídico da Vale (1982-2003); autor de "A Razão Societária – Reflexões sobre Fusões & Aquisições e Governança Corporativa no Brasil" (Renovar, 2015).

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