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Em meio a crise, autores e editores buscam meios de renovar a ficção

Engajamento político mais evidente e novas formas de vendas de livros são saída para alguns autores

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SANTIAGO NAZARIAN

O mercado editorial brasileiro vive o pior momento dos últimos anos.

Se no início dos 2000 o cenário era promissor —com a onda de “jovens escritores”, a proliferação dos eventos literários (como a Flip, que estreou em 2003 e inspirou uma série de feiras pelo Brasil) e as compras governamentais em alta—, hoje as livrarias decretam falência, os festivais perdem patrocínio, a arte é perseguida e os artistas são vistos como vagabundos, perseguidos pelo atual governo e sua “gente de bem”. ”A mamata acabou”, mas, de alguma forma, os escritores sobrevivem.  

Falar em “crise na ficção brasileira” é um pleonasmo, se a priori a ficção nasce da crise (ou de algum tipo de crise). Entretanto, ao mesmo tempo em que se dificultam os mecanismos para criar, comercializar e promover a literatura, os escritores brasileiros também se encontram numa crise ideológica: como fazer ficção pura no momento político em que vivemos? Até onde vai a necessidade de retratar uma realidade e levantar bandeiras, até onde o ficcionista tem o dever de criar algo novo e próprio?

 
Movimentação em no centro histórico de Paraty, durante a Flip 2019 - Eduardo Anizelli/ Folhapress

O argentino-paulistano Julián Fuks, autor de “A Resistência” (Companhia das Letras) e vencedor do Prêmio Saramago, defende há tempos o que chama de “literatura ocupada”, que aborde as questões mais importantes do momento. 

“Tenho pensado numa literatura que não apenas responda às circunstâncias, mas aja sobre elas. E, então, não se trata só de deixar que o presente emerja na literatura, e sim que a literatura se deixe ativamente ocupar pelo presente, pela política, pela luta. O ato de ocupar tem sido central no exercício político: ocupar praças, ruas, escolas, edifícios públicos. O que nos impediria de pensar numa literatura ocupada?”

Fuks reconhece que, com esse pensamento, a ficção pura não lhe basta. “O conceito de ficção se fez um tanto problemático para mim. Há tempos tenho sofrido com a arbitrariedade de inventar histórias, inventar personagens, dotá-los de nomes e biografias. Nem por isso vou parar na não ficção. O que tenho feito é algo como uma ficção sem fabulação, uma ficção como tentativa de aproximação ao real.”

Preocupação semelhante tem o escritor e agitador cultural pernambucano Marcelino Freire, que há tempos também se aproxima de uma literatura engajada. Ano passado ele foi um dos organizadores da antologia independente “Lula Livre, Lula Livro”. “Reunimos 90 escritoras e escritores brasileiros em textos inéditos. É um livro político, para eu não me sentir um escritor bundão, que só vive sentado, olhando a paisagem pegar fogo. É preciso dizer de que lado se está, comprometer-se. Boa parte da literatura brasileira é frígida. Vive na redoma faz tempo.”

Esse caráter político da literatura, que tem tomado protagonismo, dá a impressão de colocar a ficção “pura” cada vez mais na retaguarda, mesmo no maior festival literário do país, a Flip. Enquanto que os ficcionistas brasileiros se engalfinham para ocupar as mesas e as casas paralelas, a programação oficial privilegia o caráter político e a não ficção (mesmo que essa, em si, tenha seu valor literário, ou que a ficção tenha seu valor político).

Se os autores têm sentido a necessidade de tratar da crise, como a crise vem tratando os autores? Como esse momento de instabilidade política e econômica se reflete não apenas na produção, mas na publicação, nos investimentos?

“Acho que temos, sim, uma crise de mercado que está atrapalhando momentaneamente os autores”, aponta a agente literária Lucia Riff. “As grandes editoras encolheram suas programações a um mínimo, e os cortes acabaram afetando, mais diretamente, as obras de ficção. Mas isto não quer dizer que haja uma crise na ficção, uma vez que os ficcionistas continuam escrevendo bastante, continuam publicando, o público continua lendo. Novas editoras continuam surgindo e novas formas de leitura também, vide o grande sucesso dos audiobooks.”

Uma editora que ganha espaço e relevância no mercado da ficção nacional é a paulistana Nós, de Simone Paulino, que chegou a trabalhar de empregada doméstica na adolescência e hoje valoriza o papel transformador da cultura.

“O catálogo da Nós é composto por 90% de ficção. Temos pouquíssimos títulos de não ficção. E criamos um linha de poesia. Remamos contra a maré por uma crença quase insana na literatura como instrumento de transformação existencial e social. Fundei a editora baseada na premissa do professor Antonio Candido, no célebre ensaio ‘O Direito à Literatura’. Precisamos de ficção para aguentar a realidade”, diz. 

Ela reforça o papel político do escritor: “Não consigo compreender um artista que não reflita o seu tempo. Sei que temos grandes autores que passaram ao largo da política - ou acharam que passaram - como o Borges. Mas penso que a construção ou a desconstrução de um país e de uma sociedade está vivamente ligada à construção da literatura e das artes em geral. A mim, como editora, não interessa a alienação. O que me interessa, inclusive como leitora, é a vida presente, o homem presente, para usar uma expressão do Drummmond. E isso inclui a política. Aquela máxima de que o pessoal é político e o político é pessoal nunca fez tanto sentido. E um escritor que não perceba a sua implicação histórica não me interessa muito.”

“A ficção atual é a mais vigorosa de que tenho notícia”, continua Marcelino Freire. “Há quem viva lamentando o fechamento de lojas da Livraria Cultura e só discute prêmios literários. Enquanto isto, muitos poetas e prosadores surgem, vendendo seus próprios livros, circulando pelo Brasil, soltando o verbo.” 

“Já há, faz tempo, uma geração sem livrarias”, diz, referindo-se ao que chama de “geração da maquininha”. “Puxam a maquininha e vendem os exemplares ali, na hora, sem atravessadores. As grandes editoras querem saber o segredo desta ‘circulação’, desta literatura que nunca dependeu do mercado e das estantes altas das livrarias. Na crise, tem quem entre em crise. Há autores e autoras que sempre viveram na crise, por isso se reinventam. E reinventam a literatura brasileira.”

Um exemplo vigoroso dessa nova geração que surge às margens da crise é Marlon Souza, 26 anos, negro e homossexual, de São João de Meriti (RJ). Filho de mãe solteira e criado pela avó, cresceu numa família de não leitores; hoje é uma figura atuante na cena literária da Baixada Fluminense. Aos 22 anos publicou seu primeiro romance de forma independente —“Às Vezes”, sobre um jovem infectado com HIV, ao qual se somaram mais dois títulos, além de participações em diversas antologias. 

Marlon também organiza o LiteraCaxias, evento literário que se iniciou em Duque de Caixas e se desdobrou por outras cidade de Rio e São Paulo, e edita a revista “Publiquei”, focada em autores independentes. Atualmente prepara um romance para a editora Malê, especializada em autores negros. 

“Para mim, é incrível ver escritores negros e/ou LGBTs conseguindo ascender profissionalmente, suas narrativas ganhando espaço. Algo que não tive na adolescência e estou tento oportunidade de experimentar hoje. O acesso está mais fácil, o debate está em maior evidência, e apesar de ainda existir um forte preconceito, acredito que esteja havendo uma crescente significativa”, diz Marlon. 

No entanto, se o autor de ficção adulta se vê impelido a refletir sobre a realidade político-social do momento, autores de literatura infantojuvenil sentem uma pressão contrária. “Não me preocupo tanto com crise econômica”, acrescenta Lucia Riff. “O que me assusta é essa crise ideológica, autor de livro infantil que tem medo de abordar certos assuntos por causa da patrulha, porque depois o livro não vai ser adotado em escolas.” 

Simone Paulino completa: “Literatura é resistência. Sempre foi. Sempre será. A ficção escrita por mulheres nunca foi tão pulsante. Nunca as mulheres escreveram tanto e tão bem. E nunca foram tão lidas! Como disse o Fernando Haddad dia desses: Os livros sempre vencem. Eu preciso acreditar nisso para continuar existindo, como leitora, como escritora, como editora.” 


SANTIAGO NAZARIAN, autor e tradutor, escreveu, entre outros,  "Biofobia" (Record) e "Neve Negra" (Companhia das Letras)

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