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Internet de hoje nunca servirá à emancipação, diz Jonathan Crary

Em novo livro, crítico de arte defende um futuro com relações que não dependam do aparato tecnológico atual

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Computadores empilhados em depósito

Imagem da série 'Deserto Rosso' (2016), de Giselle Beiguelman Divulgação

Giselle Beiguelman

Artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Autora de "Memória da Amnésia" e "Políticas da Imagem", entre outros livros

[RESUMO] Em seu livro mais recente, Jonathan Crary argumenta que só iremos sobreviver de maneira justa e humana se construirmos formas de relacionamento fora da internet e dos aparatos tecnológicos dominados por grandes corporações. Em contraponto à ideia de que o tecnocapitalismo é incontornável, o crítico de arte propõe o que chama de técnicas de subsistência, práticas não ocidentais ou indígenas nas quais a vida de um grupo se funda em interdependência com a terra e outras espécies.

"Terra Arrasada", novo livro do crítico de arte e ensaísta Jonathan Crary, pode ser lido como continuação do seu trabalho anterior, "24/7: Capitalismo Tardio e os Fins do Sono", de 2013, mas também como um chamado para a mudança econômica, social e cultural. Essa mudança demanda a reapropriação do imaginário coletivo e estabelece o contexto em que as questões previamente colocadas pelo autor ganham sentido de urgência.

Os dois primeiros capítulos tecem uma análise desse "complexo internético" à luz da globalização, sem perder de vista o custo ambiental do uso desenfreado de tecnologias e equipamentos que caducam antes que sejamos capazes de decifrá-los.

Homem de paletó branco em parque
Retrato de Jonathan Crary, autor de 'Terra Arrasada' - Divulgação

No terceiro e último capítulo, destaca-se uma análise original dos sistemas biométricos, discutidos não pela chave das tecnologias de vigilância, mas em relação aos procedimentos voltados para adestrar e controlar o olhar, trazendo para o contexto do século 21 fenômenos a que o autor se dedica desde o consagrado "Suspensões da Percepção", de 2000.

Ao lançar um olhar histórico sobre os atuais arranjos tecnológicos, o livro coloca à prova fundamentos como a internet das coisas e a inteligência artificial. Dominado por empresas sociocidas, como Crary denomina as controladoras do big data, o complexo internético forja a subjetividade dos que se ocupam apenas de sua imagem e de seus feitos. Ele é a chave para compreender a financeirização das emoções e o aprofundamento da captura da agência humana pelo capital no âmbito do neoliberalismo contemporâneo.

Ao longo do texto, são mobilizadas referências do campo da filosofia, da história e dos estudos culturais, em diálogo crítico com a ciência, a literatura e a publicidade das empresas de mídia digital e de software, a fim de desfazer a falácia de que o mundo ditado pelo tecnocapitalismo seria incontornável.

Aos que dizem que já não é possível viver em um mundo livre do domínio do complexo internético, pois isso "significaria ter que mudar tudo", Crary responde: "Sim, é exatamente isso".

A constatação do estado de terra arrasada em que nos encontramos, por isso, não é dada como ponto final de um processo irreversível. Pelo contrário, é um ponto de partida para pensar outras tecnologias e outros desenhos de comunicação em um "mundo pós-capitalista que compartilhará de poucas semelhanças com as redes financeirizadas e militarizadas que nos aprisionam hoje".

Em entrevista concedida via Zoom, Crary fala das motivações do livro e como a internet atual espelha o sonho americano e a glorificação do individualismo. O autor também defende o direito ao sono, como direito à imaginação coletiva, e a necessidade de contrapor "técnicas de subsistência" ao tecnocapitalismo.

Em "Terra Arrasada", o sr. afirma que o "sonho tecnomodernista de um planeta como canteiro colossal de obras de inovação" fundamenta o modelo de capitalismo que governa o complexo da internet. Quais aspectos do sonho tecnomodernista são visíveis em nosso presente? O que chamo de tecnomodernismo refere-se aos fundamentos ideológicos das fases posteriores do capitalismo industrial. É o produto de todas aquelas instituições que internalizaram os imperativos do crescimento e a fantasia do progresso material sem fim. Baseia-se em uma relação instrumental com o mundo físico e com a sociedade humana, e considera ambos como recursos a serem extraídos ou explorados.

O trabalho do filósofo Bernard Stiegler é importante por sua insistência em que os modelos e paradigmas industriais persistem, mesmo que diferentes formas de produção e subserviência compulsória estejam em vigor. Para responder mais especificamente à sua pergunta, gostaria de apontar para a preeminência agora da ciência de dados, do que é vagamente chamado de inteligência artificial e das neurociências.

Sinergias estão surgindo entre essas áreas, cujos resultados ainda não são totalmente visíveis. Mas é no interior do nexo entre esses campos em que alguns dos produtos e conceitos gerenciais mais perturbadores estão sendo desenvolvidos, mesmo que estejam envoltos em um vocabulário altruísta sobre como resolverão todos os problemas que enfrentamos.

O que está acontecendo agora é a consolidação de um novo culto à expertise, posando como pesquisa científica "objetiva", que exclui qualquer participação democrática nas decisões sobre a direção ou uso de tecnologias tão poderosas. Estamos vendo um desempoderamento maciço das comunidades humanas e a degradação da sociedade civil pelo domínio dessas "ciências". Em síntese, não há nada de benéfico na robótica social ou no aprendizado de máquina.

O sr. afirma que as redes sociais afetam a própria possibilidade da política. Contudo, movimentos sociais recentes, como o Black Lives Matter, tiveram as redes como uma de suas principais plataformas de articulação. Eles aconteceriam de qualquer maneira, mas diferentemente do que aconteceram, justamente pelas redes sociais. Como vê esse tipo de fenômeno? O uso das redes sociais é hoje ubíquo, e meu livro não está sugerindo que as pessoas poderiam, subitamente, ficar offline.

No entanto, estou insistindo veementemente que nunca avançaremos em direção a um mundo social não opressivo a menos que as pessoas se comprometam com formas de se conectar e se comunicar que não sejam moldadas por essa constelação de aparatos corporativos e controlados pelo Estado.

Além disso, não é verdade que as redes sociais tornaram possível o movimento Black Lives Matter, a Primavera Árabe e outros desenvolvimentos relacionados. Engana-se quem continua acreditando que a internet é uma ferramenta essencial para os movimentos sociais. Nunca seremos capazes de fazer o complexo da internet servir a objetivos emancipatórios ou igualitários.

Nas décadas de 1980 e 1990, muitos teóricos declararam que as ferramentas de instituições poderosas poderiam ser apropriadas ou invertidas para fins radicais ou mesmo revolucionários, mas poucos acreditam genuinamente nisso agora. Se queremos sobreviver e nos sustentar de maneira justa e humana nas próximas décadas, temos que começar a construir formas radicalmente diferentes de nos relacionarmos e trabalharmos uns com os outros.

Hoje, a China é um dos atores mais importantes do mundo digital, definindo novas escalas de poder e comportamento. A internet chinesa aponta para uma nova era do complexo internético, diferente do modelo de consumo dos EUA? Não conheço o suficiente sobre o modelo chinês para comentar aqui, mas suspeito que os efeitos de um complexo internético, em uma escala demográfica tão maciça, teriam muitas semelhanças com o contexto americano ou europeu de que venho falando e que produzem uma correspondente homogeneização e empobrecimento da experiência social.

Minha hipótese, compartilhada por outros, é que há algo intrinsecamente estadunidense nas formas pelas quais a internet e as redes sociais surgiram, uma intensificação do individualismo tóxico que faz parte da América branca há 200 anos. É uma resistência profundamente arraigada a qualquer obrigação de apoio mútuo e responsabilidades comunitárias.

Ouvimos todos os tipos de declarações sentimentais sobre como somos uma nação que se preocupa com outras pessoas, mas alguém como Donald Trump só teve sucesso porque fez a repescagem do egoísmo inerente aos americanos e seu ressentimento com os outros. A fantasia do sonho americano é exacerbada pela internet —o desejo competitivo de sucesso individual e a riqueza que é medida em relação ao fracasso dos outros.

Sistemas populares como o reconhecimento facial apagam uma tradição de autonomia da face em relação ao corpo, marcante a partir do final do século 19. O rosto é hoje um template estatístico que se refere não apenas ao corpo de um indivíduo, mas à sua inserção social. Como o sr. define essa mudança e que impacto ela tem na dinâmica da atenção e da percepção? No livro, eu queria seguir uma direção diferente ao pensar em sistemas biométricos. Estou menos interessado nos problemas de vigilância e mineração de dados que nas consequências de incorporar nossos meios de expressão mais íntimos em sistemas de máquinas.

Assim, considero três fenômenos: o rosto, o olhar e a voz. Esses são os alicerces frágeis de como nos conectamos com os outros, como somos capazes de sustentar, mesmo que provisoriamente, uma existência compartilhada, que pode incluir amor por outras pessoas e pelo mundo. É por isso que o trabalho do filósofo Martin Buber foi importante para mim aqui.

No entanto, cada vez mais, o rosto, o olhar e a voz são expropriados diariamente por operações rotineiras e sem vida que diminuem nossa capacidade de responder aos outros. Ser vigiado por corporações poderosas e instituições estatais é obviamente algo deplorável, mas quanto mais nos preocupamos com a privacidade online, com a proteção de nossos dados, mais contribuímos para nossas próprias experiências de isolamento e separação.

O sr. termina seu livro apontando que outros repertórios tecnológicos do Sul Global podem ser parâmetros para pensar a comunicação além da internet. Quais elementos desses repertórios destacaria? Como será o futuro offline? Usei a expressão "técnicas de subsistência" para incluir uma vasta gama de práticas e corpos de conhecimento arcaicos, pré-modernos, não ocidentais ou indígenas. Encontraríamos nessa diversidade todas as formas pelas quais a vida de um grupo ou comunidade se fundava em relações de parentesco e em uma interdependência com a terra e outras espécies.

Nossa imersão na áspera eletroluminescência de nossos meios tecnológicos é tamanha que estamos perdendo a capacidade de perceber, com todos os nossos sentidos, a beleza do mundo e a interconexão de tudo nele, inclusive de nós mesmos. Podemos saber disso abstratamente, mas estamos cada vez mais impedidos de viver a experiência disso.

Seu livro "24/7" é conhecido internacionalmente, mas goza de um status especial no Brasil, sendo referência de norte a sul e para as mais diversas disciplinas. Como vê o sucesso desse livro no Brasil? Fico imensamente satisfeito com esse interesse em meu trabalho, mas não conheço as formas concretas pelas quais esse público leitor se desenvolveu. Talvez em parte isso se deva à persistência no Brasil de outras tradições, contratradições, de formas únicas de comunidade e apoio mútuo, ainda que tenham sido impactadas ao longo do tempo por diferentes processos de modernização.

Central para "24/7" foi uma compreensão transindividual do sono como algo que ocorre em um mundo social. O indivíduo que dorme é um ser humano em seu estado mais vulnerável, que precisa de segurança e proteção, e esse dever de cuidado se estende a muitos outros tipos de necessidades sociais e físicas.

Da mesma forma, a insônia foi para mim uma noção que expôs a incompatibilidade da aceleração capitalista com a necessidade de descanso e regeneração para todos os padrões cíclicos que sustentam um mundo da vida.

Há um novo livro sobre o papel dos sonhos na cultura yanomami ["O Desejo dos Outros", de Hanna Limulja]. Esses sonhos têm um papel diferente do que exercem no mundo ocidental, não "explicam" quem você é ou porque você se comporta desta ou daquela maneira. São algo que permite aos yanomamis se conectarem aos desejos dos outros. Quando pensamos no início de "24/7", sobre os estudos para otimizar a capacidade de não dormir, é uma bagagem cultural tão diferente. Na maior parte da América do Norte, sonhar tem sido uma experiência irrelevante, completamente privada e individualizada. Freud foi apenas um dos muitos que recusaram a possibilidade de que o sonho pudesse ser entendido como algo maior que simplesmente o produto restrito a eventos reprimidos da infância.

A dimensão visionária e fortalecedora do sonho tem sido constantemente erradicada no Ocidente. Que sonhar possa fazer parte das formas pelas quais uma comunidade passe a entender suas próprias experiências, seu futuro, é algo impensável na maior parte do mundo ocidental.

Nos Estados Unidos, estamos agora vivendo o pesadelo de tiroteios em massa e ataques assassinos da polícia, e as pessoas estão ficando insensíveis à natureza suicida e assassina da sociedade em que vivemos.

Ao mesmo tempo, enquanto somos inundados pelo fluxo interminável de imagens na internet, estamos sendo despojados dos recursos de nossa própria imaginação, de nosso sonho coletivo e antecipação de caminhos que conduzem para fora deste presente.

Jonathan Crary, 72

Professor de arte moderna e teoria da arte da Universidade Columbia, em Nova York. Autor, entre outros livros, de "Terra Arrasada: Além da Era Digital, Rumo a um Mundo Pós-capitalista", "24/7: Capitalismo Tardio e os Fins do Sono" e "Suspensões da Percepção: Atenção, Espetáculo e Cultura Moderna"

Terra Arrasada: Além da Era Digital, Rumo a um Mundo Pós-capitalista

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