Preservação de filmes é menosprezada no Brasil
Gestores públicos precisam entender urgentemente a importância da conservação da memória do cinema nacional
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
[RESUMO] Estúdios, cinematecas e fundações internacionais têm investido na preservação e na restauração de filmes antigos, uma tarefa urgente que o cineasta Martin Scorsese comparou ao tique-taque de um relógio. O Brasil, que já perdeu inúmeras obras, pode assistir ao desaparecimento de outra parcela da sua cinematografia por negligenciar a conservação em políticas para o audiovisual.
O Brasil ainda não despertou para a necessidade de preservar e restaurar seus filmes, embora o tema esteja na ordem do dia do cinema mundial. Não é para menos. A fragilidade do suporte fotoquímico utilizado no cinema ao longo do século passado já levou ao desaparecimento de inúmeras obras, e os filmes realizados antes da transição digital no século 21 devem ser transpostos para o novo formato a fim de possibilitar a sua exibição em todos os meios.
Atualmente, a projeção digital é realizada por meio do DCP (pacote de cinema digital, na sigla em inglês) armazenado em um HD externo conectado ao projetor da sala de cinema que "ingesta" o arquivo do filme ou que é enviado pela internet no caso de veiculação em TVs e plataformas de streaming.
Preservar quer dizer guardar os filmes adequadamente em ambiente seco e refrigerado, de preferência com a digitalização das matrizes e de uma cópia em bom estado que servem de base para eventual restauração.
Mesmo armazenados em cinematecas e outras instituições em condições adequadas, nem sempre esses materiais estão preservados. Com o passar do tempo, os negativos se deterioram e, se chegam ao ponto de avinagrar, estarão perdidos para sempre. Por isso, Martin Scorsese compara a necessidade da preservação ao tique-taque do relógio, uma corrida contra o tempo.
Mas a digitalização é apenas o primeiro passo para proteger a integridade e o acesso às imagens contidas nos filmes. Muitas vezes é preciso restaurá-las, o que significa identificar no negativo original os fotogramas arranhados, cobertos por nódoas ou com as cores esmaecidas, e compará-los com as mesmas imagens em matriz secundária ou cópia preservada. As informações que estiverem mais limpas serão clonadas nas imagens danificadas para repará-las.
É um trabalho delicado como toda restauração, mas vale a pena. A célebre montadora Thelma Schoonmaker, parceira de Scorsese de longa data, disse com razão que recuperar o projeto original do realizador é como realizar um milagre.
Os grandes estúdios perceberam que a comercialização de filmes das décadas passadas pode ser rentável na era digital. Devido ao adiantado da hora, têm restaurado boa parte de sua produção, às vezes em parceria com cinematecas e fundações internacionais que, por sua vez, restauram filmes independentes de vários países, entre os quais obras-primas.
Filmes do mudo ao sonoro, do preto e branco ao technicolor, do western ao suspense, do clássico ao underground são vistos nos festivais, nas televisões, em plataformas de streaming e até nos cinemas. As cinematografias estadunidense, europeia e de outras partes do mundo têm levado a sério reavivar antigos tesouros que deslumbram e educam.
Em 2023, cinco filmes mexicanos dos anos 1940 estavam em cartaz em Paris, de um total de 25 restaurados pela Televisa, que pretende fazer o mesmo com mais 400 títulos, como anunciado no Cinema Ritrovato.
Esse festival, promovido pela Cinemateca de Bolonha e frequentado por historiadores, diretores, produtores, atores, roteiristas, cinéfilos, restauradores e pesquisadores, atrai um grande público de todas as idades para assistir a centenas de filmes restaurados que, durante dez dias, são exibidos nas salas de cinema.
Ilustres profissionais do cinema mundial dispensam o tapete vermelho. Conversam sobre suas trajetórias, filmes, experiências e pensamentos em palestras abertas ao público. Palco e plateia têm em comum a percepção do cinema como arte e difusor de conhecimento.
A reunião anual da Fiaf (Federação Internacional de Arquivos de Filmes) é recepcionada pelo festival, e as restaurações realizadas pelo laboratório L'Immagine Ritrovata, em parceria com instituições como a Cinemateca Francesa e a Film Foundation, circulam pelo mundo.
A nota dissonante é a rara presença de obras brasileiras nesse festival e no seu congênere em Lyon, promovido pelo Instituto Lumière e o seu diretor Thiérry Frémaux, também delegado-geral do Festival de Cannes. Ainda não percebemos a importância política, econômica, histórica e artística da preservação e do restauro fílmico.
Por aqui, esses trabalhos dependem do esforço individual de realizadores ou herdeiros e da sua capacidade de levantar recursos, conduzir a preservação pela atualização tecnológica dos filmes e a sua restauração. Por isso, temos pouquíssimos filmes brasileiros restaurados.
Assim, a cinematografia brasileira produzida anteriormente à chegada do digital corre o sério risco de ter a sua história apagada até desaparecer totalmente devido à inviabilidade de exibição dos filmes no antigo formato e à deterioração de suas matrizes. Já perdemos bastante e podemos perder muito mais.
Negligenciar a conservação das obras também significa um desperdício dos esforços pessoais, criativos e empresariais de gerações de realizadores e do empenho dos gestores do audiovisual ao longo do século 20, bem como a relegação ao esquecimento de grandes momentos do cinema brasileiro reconhecidos mundialmente.
Outro motivo primordial para a preservação e a restauração é que as imagens contidas nos filmes revelam a nossa história, nossas visões de mundo, nossos modos de vida nas diferentes épocas —a cultura, a política, a memória do país. Seu objetivo final é a exibição das obras ao público em geral.
Depois, certamente contribuirão para a difusão de conhecimento e formação de plateia, informação a historiadores e pesquisadores, e para o deleite dos cinéfilos. Aos estudantes e profissionais de cinema, o conhecimento da técnica e da linguagem do passado ilumina realizações presentes que projetam o futuro. Grandes filmes são bússolas para as gerações de hoje e para as que virão.
É urgente que os próprios produtores, realizadores independentes e atuais gestores do audiovisual compreendam a importância de conciliar o passado e o presente da cinematografia do país.
No Rio de Janeiro, por exemplo, o plano de ação da Lei Paulo Gustavo da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa prevê a destinação de cerca de R$ 100 milhões para o audiovisual, mas apenas 1,5% desse valor será voltado ao edital de apoio à memória e preservação. Serão selecionados somente nove projetos para a digitalização de acervos e nenhum para a restauração.
No âmbito municipal, a Riofilme lançou editais para produção, distribuição e exibição da ordem de R$ 64 milhões, sem que haja nenhuma destinação para preservar e restaurar. Como disse Gustavo Dahl, não se trata de criticar o descaso histórico com as imagens que o país produz no cinema e indicar a sua dificuldade em assumir uma identidade, mas de "sinalizar dramaticamente a urgência de uma atuação na salvaguarda de um patrimônio cultural e econômico" —uma questão também de autoestima.
A boa notícia é que tem se falado sobre o assunto em alguns fóruns e festivais de cinema. Esperamos que gestores e demais agentes passem das conversas à ação, enquanto um dos melhores restauradores entre os poucos existentes no país roda pelas ruas de São Paulo trabalhando como motorista de aplicativo.
Receba notícias da Folha
Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber
Ativar newsletters