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Donny Correia

Fotos de Walter Hugo Khouri refletem angústia de seus filmes

Cineasta é tema de retrospectiva na Cinemateca e tem seu acervo divulgado

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Donny Correia

Doutor em estética e história da arte e membro da ABCA e da Abraccine. É autor de seis livros e prepara uma revisão da obra completa de Walter Hugo Khouri

[RESUMO] Relativamente esquecido após sua morte, Walter Hugo Khouri (1929-2003), um dos principais cineastas brasileiros, passa por fase de reavaliação e descoberta por novos públicos. A Cinemateca promove até domingo (20) retrospectiva com 15 filmes de diferentes fases de sua carreira. Além disso, raridades do acervo do diretor começam a ser conhecidas, como fotografias de bastidores de filmagens que recriam os dilemas existenciais característicos sua obra.

Walter Hugo Khouri é um caso raro, para não dizer único, na cinematografia brasileira. Em cinco décadas de carreira, sua extensa filmografia combinou sucessos de público com uma visão autoral marcante sobre a vida e o cinema, como poucos outros cineastas brasileiros chegaram a alcançar.

Nascido em São Paulo em 1929, iniciou sua carreira aos 20 anos, nos estúdios Vera Cruz, como assistente de direção, mas logo partiu para projetos próprios.

Norma Bengell em cena do filme 'Noite Vazia' (1964), de Walter Hugo Khouri - Walter Hugo Khouri/Acervo pessoal/Divulgação

Em 1958, lançou "Estranho Encontro", um drama minimalista que surgiu como corpo estranho no contexto brasileiro. O filme dialogava com obras seminais do cinema moderno, como a de Ingmar Bergman —como crítico de cinema, Khouri foi um dos primeiros por aqui a escrever sobre o cineasta sueco.

Em 1964, enquanto o cinema novo dava corpo a uma série de trabalhos abertamente críticos à realidade do país, Khouri lançava seu maior clássico, "Noite Vazia", e se fechava em um estilo muito particular, que envolvia o retrato da frivolidade burguesa e dos demônios internos de indivíduos egoístas, achacados pelo desolamento de uma metrópole cinza como a capital paulista.

Trabalhando muitas vezes de maneira independente, Khouri ficou marcado pelos temas existenciais e pelo erotismo refinado de seus filmes, que lhe valeram a pecha de alienado e hermético, por não serem recheados de favelas, sertanejos ou fanáticos religiosos.

A crítica social de seus filmes se dava em outro âmbito: no vazio indiferente e nas obsessões dos donos dos meios de produção. Incompreendido, teve de fazer concessões a produtores de pornochanchadas para continuar filmando, mas nunca abriu mão da coerência narrativa e estética. Seu filme "Eros, o Deus do Amor" (1981) é um balanço de suas ideias de cinema, das relações humanas e da história política do Brasil entre velhas e novas ditaduras.

Quando morreu, em junho de 2003, aos 73, Khouri passava por um período de baixas em sua longa carreira. O cinema brasileiro havia praticamente acabado no início dos anos 1990, com a extinção da Embrafilme, órgão estatal de financiamento do setor, e o diretor enfrentou enormes dificuldades para finalizar seus filmes "Forever" (1991) e "As Feras" (1995).

A saúde também se degradava, o que atrapalhou a finalização de seu último longa, "Paixão Perdida" (1998), que a crítica reprovou e o público praticamente não viu, já que circulou timidamente, em poucas salas de cinema e por um tempo muito curto.

Para completar, as disputas e polêmicas em torno de "Amor, Estranho Amor" (1982) ainda eram intensas e reduziam Khouri ao mero "diretor daquele filme proibido da Xuxa".

Ao longo dos anos seguintes, a obra de Khouri foi se diluindo cada vez mais, a despeito dos esforços de algumas revistas, blogs e poucos livros, que se debruçavam em seus filmes mais conhecidos e prestavam homenagens solitárias e esparsas.

Mais recentemente, contudo, algumas coisas começaram a mudar. Xuxa passou a dar declarações simpáticas a "Amor, Estranho Amor", o nome de Khouri voltou a figurar em alguns artigos que alertavam para o desaparecimento de seus filmes, tanto em mostras quanto no agonizante mercado de vídeo doméstico, e seu neto, Wagner Khouri, passou a organizar e a gerir o imenso acervo do avô, que ainda permanecia guardado no mesmo apartamento onde o diretor viveu por décadas, no centro de São Paulo.

Wagner examinou caixas e caixas deixadas pelo avô, separou e higienizou documentos e começou a organizar cada item segundo o filme a que pertencia. O material inclui manuscritos, roteiros originais, diplomas, prêmios e fotos, muitas fotos, com seus negativos preservados e catalogados pelo próprio Khouri em vida.

Nessa pesquisa, veio à tona algo absolutamente desconhecido a respeito do diretor: seu talento para a fotografia estática.

KHOURI, O FOTÓGRAFO

Ao longo de sua carreira, Khouri consolidou-se pela atuação intensa em todos os aspectos dos filmes que escreveu e dirigiu. Não cuidava apenas da história e do elenco. Muitas vezes operava a câmera, planejava a direção de arte, escolhia as músicas incidentais e frequentemente se encarregava da montagem final.

Fazia o que se chama cinema de autor, um cinema concebido de ponta a ponta segundo a visão de quem o realiza e que ficou mundialmente em voga a partir das experiências do neorrealismo italiano, da nouvelle vague francesa e do cinema novo brasileiro, por exemplo.

Mesmo se ocupando de todos esses processos, Khouri preocupou-se com a documentação em fotografias de várias de suas principais obras. Não se trata de imagens para divulgação ou registro pessoal. São reconstruções daquilo que o espectador veria na tela, fotos que trazem, inclusive, ângulos inéditos para cenas conhecidas e até sequências inteiras que não entraram nas versões finais para cinema, o que demonstra uma preocupação do diretor em criar uma obra autônoma, independente do filme.

Trabalhos como "A Ilha" (1963), "Noite Vazia" (1964), "O Corpo Ardente" (1966) ou "As Deusas" (1972) são retratados por fotografias em vários álbuns de luxo, com ampliações rebuscadas, em papel de alta qualidade. Tudo organizado pelo próprio cineasta por pelo menos três décadas.

Cada imagem não só emana a aura da poética khouriana e seu cinema, mas também ajuda o observador a compreender as minúcias de sua criação. Conhecido pelos belos closes e pelos enquadramentos rebuscados, sobretudo no que diz respeito às mulheres que dirigiu, Khouri consegue ampliar as reflexões metafísicas que perseguia por meio de sua coleção de imagens.

São registros do silêncio, da angústia e do abismo manifestados nas figuras de Odete Lara, Norma Bengell, Eva Wilma, Luigi Picchi, Mário Sérgio, Liliam Lemmertz, Kate Hansen, Roberto Maya, Nicole Puzzi, Monique Lafond, Fernando Amaral, entre vários outros.

Com a descoberta do material e visando promover a divulgação do acervo, Wagner Khouri passou a buscar apoio de instituições para viabilizar exposições e acesso a pesquisadores. "É meu dever moral cuidar para que meu avô não caia no esquecimento e seu acervo seja devidamente tratado e disponibilizado."

O mesmo vale para os filmes de Khouri. Nos últimos cinco anos, Wagner rastreou cópias e formatos da filmografia de seu avô, para que sua obra fosse novamente vista pelos antigos admiradores e chegasse a novos cinéfilos.

Os esforços têm frutificado. A Cinemateca Brasileira promove, até domingo (20), uma retrospectiva com 15 filmes, incluindo o raríssimo "O Gigante de Pedra" (1951-1954), primeiro trabalho de Khouri, que perdeu parte de sua metragem original. A retrospectiva é complementada por uma exposição e um catálogo com imagens inéditas e documentos extraídos diretamente do acervo do diretor.

Wagner busca agora entidades interessadas em expor todas as fotografias. Com a perspectiva de que Walter Hugo Khouri volte a figurar nos importantes estudos de cinema brasileiro e sua memória seja resgatada, também é urgente que seu acervo total seja devidamente acolhido e catalogado.

Retrospectiva Walter Hugo Khouri

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