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Felipe Fortuna

Millôr desconstruiu artes plásticas com humor e desconfiança

Em longa produção de desenhos e pinturas, ele estabeleceu diálogos paródicos ou críticos com grandes artistas

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'Enterro de Mondrian' (1978, Nanquim, aquarela e guache sobre papel), de Millôr Fernandes Arquivo Millôr Fernandes/Acervo IMS/Divulgação

Felipe Fortuna

Diplomata, ensaísta, poeta e tradutor. Publicou recentemente nova coletânea de poemas em "Um Livro de Amizades" (Topbooks)

[RESUMO] Homem de imprensa que olhava com descrença para as artes plásticas, Millôr Fernandes manteve em seus incontáveis desenhos, cartuns e pinturas uma relação desabusada com ícones como Picasso e Mondrian. O humorista, que completaria cem anos na quarta-feira (16), fez do ato de desenhar um tema recorrente de sua obra, que desafia classificações e intriga críticos.

Um dia, em seu estúdio na rua Gomes Carneiro, no Rio, Millôr Fernandes me pediu que contemplasse um quadro abstrato elaborado por ele e intitulado "Eu". Havia ali duas compridas linhas verticais e vermelhas, uma delas cruzando de ponta a ponta e com dois retângulos centralizados, tudo sobre o fundo branco.

Como se eu demorasse a lhe dizer algo, ainda mais diante de um quadro que me pareceu banal na parede em que se encontravam outros bem mais atraentes, ele mesmo revelou: "É a palavra eu na forma mais espichada possível, um eu gigantesco. Não existe arte abstrata. É tudo criação subjetiva".

Obra sem título, de 1957, de Millôr Fernandes.
Obra sem título (1957, nanquim e grafite sobre papel), de Millôr Fernandes - Arquivo Millôr Fernandes/Acervo IMS/Divulgação

O pintor então confirmava uma percepção de que o quadro abstrato era um "trompe-l’oeil", um engano proposital ou nem tanto assim, ou então, como leio na compilação "A Bíblia do Caos", "as artes plásticas são apenas uma forma de patologia ótica". Ou essa: "A verdadeira arte abstrata é uma coisa sem pé nem cabeça".

Anos depois, comprei em leilão um pequeno óleo de Millôr Fernandes em que o título da obra vinha gravado na fina moldura de alumínio: "Cripto II – Dominicanos com Palimpesto". O título explicava a obra: só então a bela e colorida rosácea que se exibia e se assemelhava a um vitral de igreja ganhava novo sentido.

Millôr havia desenhado quatro monges a partir do alto, de onde se vislumbravam quatro rodelas carecas nas cabeças, cada uma delas com seu discreto contorno de cabelos, e, bem no centro, um pedaço de papel que aquelas mesmas cabeças tentavam decifrar. Mais um truque, mais uma ilusão de ótica, tudo se inclinando para o humor.

As artes plásticas em Millôr são constantemente desconstruídas pelo tenaz humor, pela desconfiança, pelo impulso de buscar outra reflexão sobre o que não está necessariamente ali. Basta considerar, por exemplo, a expressiva quantidade de seus cartuns que tematizam artistas plásticos em ação ou cenas de vernissage.

Cartum de Millôr Fernandes sobre artes plásticas, dedicado ao amigo Luiz Gravatá, jornalista
Cartum de Millôr Fernandes ironizando o mundo das artes plásticas, dedicado ao amigo Luiz Gravatá, jornalista - Divulgação

Em um desses cartuns, um casal observa quatro quadros em uma exposição, três deles totalmente em branco e com os seguintes títulos: "Nova Fase – Breve!", "Óleo sobre Óleo" e "Azul sobre Azul". O quadro do meio, intitulado "Diário Oficial", traz a imagem de um gigantesco ponto e vírgula. O homem que o vê expressa um gigantesco ponto de exclamação; a mulher, por sua vez, um gigantesco ponto de interrogação.

Por natureza, o diálogo de Millôr com os artistas plásticos tendeu a ser paródico ou crítico. Veja-se o seu "Enterro de Mondrian", no qual aparecem figuras humanas que empunham hastes, estandartes ou finas cruzes que, lá no alto, formam imagens quadriculadas alusivas às do pintor e teórico holandês.

É uma homenagem, sim —mas lembremos que Millôr escreveu "Mondrian, um belo artista (menor), é uma imposição intelectual" quando manifestou preferência por Norman Rockwell. Não escapa, porém, a informação de que se trata de um enterro de Mondrian, no qual as suas formas prestigiadas servem também para transportá-lo à sua última morada. Essa liberdade opinativa do humorista é a mesma que o fez afirmar que o icônico quadro "Abaporu" (1928), de Tarsila do Amaral, era "a pintura mais feia do mundo".

Na linha dos diálogos com artistas plásticos, é importante mencionar o painel "Guernica um Minuto Antes. Guernica um Minuto Depois" (1981): o que interessa ao artista brasileiro não é a composição do quadro em tons cinzentos de Picasso nem a violência da articulação/desarticulação presente no original, por sua vez alusivo à série "Los Desastres de la Guerra", de Goya.

"Guernica um minuto antes.Guernica um minuto depois" (1981), de Millôr Fernandes.
'Guernica um Minuto Antes. Guernica um Minuto Depois' (1981, nanquim, colagem e guache sobre cartão), de Millôr Fernandes - Arquivo Millôr Fernandes/Acervo IMS/Divulgação

Na inteligente releitura de Millôr, o minuto que antecede à catástrofe se expande em cores, projeta para trás, não para frente, o horror da guerra, dessa vez impregnando a "vida normal" de uma cidade, até que dois aviões flagrados através das janelas, uma novidade importante da releitura, comecem a lançar bombas sobre pessoas e animais.

Homem de imprensa, Millôr não era artista de ateliê nem de comunicação confinada a galerias. Mesmo no período em que utilizou muito o computador —nos primórdios do processamento da imagem, quando decretou que "arte é intriga"—, o uso final de seus desenhos era, inevitavelmente, a mídia impressa. Por isso mesmo, em contraste com uma atuação artística tão longa, serem poucas as exposições individuais que organizou: apenas três, em 1957, 1961 e 1975.

A exposição de 1957, no Museu de Arte Moderna, à época ocupando uma parte do Palácio Capanema, no Rio, terá sido a mais importante de todas. Organizada apenas com obras a bico de pena, Millôr exibiu uma linguagem original que envolvia desenho, reflexão sobre o desenho e humor, de que o já citado "Enterro de Mondrian" é um primoroso exemplo.

Esse conjunto cria uma área de ambiguidade que poderá deixar perplexo o espectador interessado em definir o que, afinal, está vendo diante de si. Perplexidade que bem expressou Ferreira Gullar, logo em seguida à inauguração da exposição citada, em artigo para o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (Poesia e humor, 15 de setembro de 1957):

"É uma bonita exposição, essa dos desenhos de Millôr Fernandes (Vão Gôgo) que o MAM está apresentando. É, além do mais instrutiva, no sentido de que vem confirmar, mais uma vez, a tese, ainda não bem aceita por artistas e críticos, segundo a qual não é preciso ser ‘artista’ para fazer arte, muito embora seja fatalmente quem o faça; e mais: que não é preciso a invenção enquadrar-se em gêneros, estilos e tendências para que seja invenção e nos comunique alguma coisa. Quem é Millôr Fernandes? Um humorista. Que são os seus desenhos? Desenhos de um humorista. Pois bem, vá ao MAM e veja como essas palavras não chegam para defini-lo. [...] Ele é humorista e não leva a sério esse negócio de críticos e artistas. No que, aliás, faz muito bem".

Sem dúvida, a estratégia de deixar em aberto a contingente ação de definir o que é o desenho de Millôr —quando é exposto não na mídia, mas nas paredes de um museu— permite melhor compreensão da obra. Por isso, Pietro Maria Bardi abriu espaço para os "cultores do desenho humoral" no prefácio a "Desenhos" (1981), em que se mostra assombrado com a infinidade de galhos e ramos da "Árvore da Pintura", o que remete a um dos mais célebres desenhos do autor (um pintor que descansa encostado ao tronco de uma árvore gigantesca e junto a uma tela de pintura em branco).

Antônio Houaiss (que também escrevera uma apresentação minuciosa em 1957 para a exposição inaugural de Millôr) publicou naquele mesmo livro a forma aglutinada "figurativovisual", dando-se conta, em sua análise, de que há muitas outras fusões nos desenhos do humorista, em sentidos inter-humanos e interpsíquicos, nos quais sempre pairam a dimensão verbal.

Para entender, por tentativa e erro, a relação desconfiada de Millôr com as artes plásticas, seria interessante reduzir as maiores admirações no desenho manifestadas pelo humorista carioca a três nomes.

Pablo Picasso, pela liberdade de consagrar formas e destruí-las, de misturar e de anunciar estilos, como se vê, entre tantos exemplos, em "Les Demoiselles d’Avignon" (1907). O alemão George Grosz, caricaturista, comentarista visual altamente politizado dos anos 1920 de Berlim, artista dada e por fim exilado.

E a maior de todas as admirações: Saul Steinberg, o artista gráfico que exibia seu pensamento pelo traço, cujo notável humor incluía fontes tipográficas, assinaturas, carimbos, trocadilhos visuais, jogos de palavra e, se não exagero, cartografia opinativa, esboços de pontos de vista.

Considerado por Millôr Fernandes um "artista fulgurante", Saul Steinberg lhe pareceu (como declarou o guru do Méier em entrevista ao Correio da Manhã em 2 de dezembro de 1956) "um gênio: ele é diferente, ele escreve a caricatura. Os outros são bons, mas não são tanto quanto ele".

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