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Marcelo Miranda

Clive Barker mudou terror ao banhar corpo e sexo em sangue

Aos 70 anos, escritor britânico prepara livros e séries e tem sua perturbadora obra revisitada por nova geração

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[RESUMO] Um dos principais e mais transgressores criadores de horror, o britânico Clive Barker levou a livros, filmes, peças e pinturas seu universo assombroso de perversões sexuais, medo e corpos dilacerados. Referência central para fãs e artistas do gênero, ele segue, aos 70, transformando seus traumas em obras horripilantes.

Em maio de 1956, no interior da Inglaterra, o pequeno Clive Barker, então com 3 anos, foi com a família assistir à anunciada última apresentação do "homem-pássaro" Leo Valentin, aventureiro francês famoso por grandes saltos aéreos com asas mecânicas.

Diante de milhares de olhos estupefatos, Valentin saltou do avião, teve problemas nas asas e no paraquedas e despencou tragicamente. Foi cair a poucos metros de onde a família de Clive estava para acompanhar o que deveria ter sido uma despedida gloriosa. Anos depois, os parentes diziam a ele terem visto "uma forma esculpida nas folhas altas do milharal, sem sangue, como se desenhada no chão".

O escritor Clive Barker e o ator Doug Bradley no set de "Hellraiser - Renascido do Inferno", em 1987
O escritor Clive Barker e o ator Doug Bradley no set de filmagem de "Hellraiser - Renascido do Inferno" (1987), dirigido por Barker - Divulgação

Barker sempre se disse assombrado não pelo que viu (a família o afastou logo que Valentin caiu), mas pelo que pai e tio lhe narraram. Talvez por isso sua literatura, notabilizada a partir de 1984 com a publicação do primeiro dos seis volumes de contos "Livros de Sangue", tenha por características as possibilidades e impossibilidades do corpo humano, suas curvas e fissuras, o que vem de dentro e o que pode escapar para fora.

A idealização do acidente com Valentin pode ter catalisado a "força vulcânica de imaginação", segundo palavras do escritor e pesquisador brasileiro Oscar Nestarez, que tornaram Clive Barker uma referência no gênero.

Em outubro de 2022, Clive Barker completou 70 anos. Apesar de recluso por problemas de saúde decorrentes de uma cirurgia malsucedida na boca, está animado. Um novo romance, "Deep Hill", vai sair em breve, e "Dark Worlds", compêndio organizado por Phil & Sarah Stokes com materiais de sua carreira na literatura, nas artes plásticas, no teatro e audiovisual, foi lançado há alguns meses.

Ele ainda está escrevendo roteiros de duas séries: uma antologia em live action, em parceria com o produtor Mick Garris, para o canal Shudder; e uma animação de horror para a HBO.

No Brasil, a editora DarkSide, atual detentora dos direitos de sua obra, colocou nas livrarias no começo de agosto o volume 5 de "Livros de Sangue" e prepara para outubro o lançamento do volume 6, todos com tradução de Paulo Raviere. Também em outubro a editora lança "Dark Worlds", traduzido por Alexandre Boide.

"Os livros de Barker são fascinantes, e a oportunidade de revisitar seus textos e artes é desafiadora e apaixonante. Ele tem uma veia poética sombria, suja, cruel e muito real que transforma cada história numa experiência aterradora", diz Raquel Moritz, diretora de estratégia editorial na DarkSide.

O trabalho mais famoso ligado ao nome de Barker é a franquia cinematográfica "Hellraiser", surgida em 1987 a partir de uma novela escrita por ele no ano anterior. Na época, o próprio autor roteirizou e dirigiu a adaptação de seu texto, marcando a década com um horror adulto, profundamente sexual e sem recalques na amostragem da violência e da teia de relações movida pelo desejo de uma mulher.

Em 2022, "Hellraiser" ganhou uma nova versão no canal de streaming Hulu (sem relação com a vindoura série da HBO). Um dos destaques celebrados nessa reimaginação foi a presença da atriz trans Jamie Clayton no papel de Pinhead, criatura do inferno conhecida pelas agulhas enfiadas no rosto, interpretada pelo ator Doug Bradley ao longo de oito filmes, de 1987 a 2005.

O canal a cabo HBO também planeja transformar o filme em série.

Histórico editorial

Entre 1990 e 1996, Barker teve seus livros publicados no Brasil pela Civilização Brasileira, a maioria traduzidos por Fábio Fernandes, um dos nomes mais conhecidos entre leitores de horror e ficção científica no país.

No final dos anos 1980, ainda em começo de profissão, Fábio foi pedir trabalho ao então editor da Civilização, Ênio Silveira. "O Ênio puxou uma publicação debaixo da mesa e perguntou ‘Quer traduzir?’. Era o volume 2 dos ‘Livros de Sangue’. Fiquei emocionadíssimo, levei para casa e já comecei naquele dia", relembra.

Fábio Fernandes verteu para o português os volumes 2, 4, 5 e 6 dos "Livros de Sangue" (os outros, 1 e 3, ficaram a cargo de Aulyde Soares Rodrigues), além dos romances "Raça da Noite", "A Trama da Maldade" e "Sacramento", todos publicados nos anos 1990.

"Sempre fui fascinado pelos mundos paralelos criados pelo Barker e também pela forma como a sexualidade é elemento constitutivo de boa parte das histórias, o que era algo incomum, especialmente em autores americanos do gênero na época", diz o tradutor.

"Não há nada necessariamente depravado nos livros dele que as pessoas não façam em suas vidas. Claro, são provocações dirigidas especialmente a gente adulta, então acredito que ele é ainda mais necessário hoje, quando vivemos tempos conservadores e reacionários", completa Fábio.

Ele revela que "Sacramento", o romance mais autobiográfico na trajetória de Barker, foi o mais vendido do autor pela Civilização Brasileira. "No ‘Sacramento’ ele usa a raiva de maneira produtiva e escreve sobre transgressão. Não adoça seus próprios traumas, como o Stephen King costuma fazer. O Barker tem mais choque e raiva."

A escritora e psicanalista Paula Febbe, autora do romance "Vantagens que Encontrei na Morte do Meu Pai" (DarkSide), identifica, na escrita de Barker, a perversão como catalisadora dos acontecimentos mais perturbadores.

"A perversão é aquilo que não podemos expor socialmente. Quando nosso superego a aniquila, ela se torna mais profunda, mais desejável. A obra do Barker, em grande parte, é essa personificação do que você gosta, mas não queria gostar", define Paula.

Para ela, o horror barkeriano se manifesta a partir desse subterrâneo mental, até ganhar a forma evocativa e explícita que se lê e se vê no trabalho do britânico. "Em Barker, o desejo é motivador do medo, e o medo é acolhedor do desejo, tudo ao mesmo tempo."

O díptico medo/desejo em Barker explode na relação do escritor com o corpo. Ecos da tragédia de Leo Valentin em sua infância e da opressão e do medo de ser um homem gay em um país —a Inglaterra— em que a homossexualidade era considerada crime e levava pessoas à prisão até 1967, aterrorizaram suas fantasias para além dos limites de uma realidade já muito traumática.

Em entrevista no seu site oficial, Barker se diz obcecado pelo processo de escrita. "Entro num estado de espírito no qual a criação da histórias é a única coisa que posso fazer. Tudo se apresenta pra mim como uma forma de narrativa. A maneira como lido com a ansiedade é contando histórias, pois elas são estruturas que contêm o meu mal-estar."

Body horror

"Uma das poéticas mais exploradas pelo Barker é a corrupção do corpo, no que hoje se convencionou chamar de ‘body horror’, ou seja, qualquer forma de subversão ou deterioração que envolva a carne e os horrores surgidos daí", diz Oscar Nestarez, profundo admirador de Barker que assumiu o ímpeto urgente de escrever histórias de horror (ele é autor, entre outros, do romance "Bile Negra", ed. Empíreo, e do livro de contos "O Breu Povoado", ed Avec) quando, na juventude, leu o britânico pela primeira vez.

"Os ‘Livros de Sangue’ nos anos 1980 causaram estardalhaço inclusive por serem um conjunto de histórias curtas, numa época em que já existiam nomes como Stephen King e Ramsey Campbell fazendo sucesso basicamente com romances de horror", diz Oscar. "Foi justamente a coesão dos contos de Barker, a brutalidade e a presença fortíssima de sexo e violência, com uso perfeito de metáforas, alegorias e elementos de fantasia, que provocaram esse frisson."

Os "Livros de Sangue" só chegaram aos EUA em 1986, depois de frustrante lançamento no Reino Unido, com pouca vendagem e repercussão midiática. Já as edições norte-americanas traziam na capa uma frase atribuída a Stephen King que catapultou o interesse e a procura pelos livros: "Eu vi o futuro do horror, e seu nome é Clive Barker".

Na época, King já era dono de cifras astronômicas de vendagem por best-sellers como "Carrie, a Estranha" (1974) e "O Iluminado" (1977). Ter seu aval fez diferença para Barker, como ele mesmo reconheceu em um discurso de 2007, em evento em Toronto, no Canadá. "Quando meus editores lançaram minhas primeiras histórias [no Reino Unido], elas foram recebidas com um silêncio tipicamente inglês: educado e devastador. E depois [nos EUA], uma voz. Não qualquer: a voz de Stephen King, que já tinha feito as pessoas de todo o mundo se apaixonarem por sentir medo."

Como diretor, Barker teve só mais duas e malfadadas experiências, com "Raça das Trevas" (1990) e "O Mestre das Ilusões" (1995), ambos prejuízos e dores de cabeça aos estúdios.

Em 1992, "O Mistério de Candyman", adaptado pelo inglês Bernard Rose a partir do conto "O Proibido", do volume 5 de "Livros de Sangue", imortalizou o ator Tony Todd no papel de um elegante espírito maléfico que aterroriza pessoas em um bairro pobre e periférico de Chicago.

Multiartista, Barker já escreveu dezenas de peças de teatro (a mais famosa é "Frankenstein in Love", releitura moderna do clássico de Mary Shelley), coordenou selos de quadrinhos na Marvel Comics (entre eles, a bem-sucedida série inspirada em "Hellraiser") e expõe pelo mundo seus instigantes trabalhos nas artes plásticas e na fotografia.

Se "os mortos têm estradas", como escreve na primeiríssima linha do volume inicial de "Livros de Sangue", Clive Barker está vivo e ativo o suficiente para pavimentá-las ao máximo, antes de partir na viagem definitiva.

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