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Descrição de chapéu mercado de trabalho

Séries de TV preenchem saudade do escritório na pandemia

De Succession a Superstore, recorremos a elas para relembrar a vida na firma

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Emma Jacobs
Financial Times

Nos últimos 12 meses, como muita gente, passei muito mais tempo assistindo a séries dramáticas e cômicas sobre locais de trabalho do que passei em um local de trabalho. E não estou sozinha nisso.

Estendida no sofá, que ocasionalmente também me servia como mesa de trabalho, observei os desajustados no porão da Abaddon Industries —um “parasita corporativo que estupra terras e droga crianças”, em “Enlightened, de Laura Dern e Mike White; fiquei com torcicolo de tanto acompanhar as idas e vindas das estrelas francesas ansiosas e iludidas da ASK, a agência de talentos parisiense de “Call My Agent!”; me indignei com o tratamento dado aos jovens financistas nas mesas de operações de “Industry”; e vi empregados de uma loja de departamentos enchendo a cara no horário do almoço e entrando em greve na Cloud 9, a loja que serve de cenário para “Superstore”.

Ver atores participando de reuniões, reabastecendo prateleiras e atendendo a telefonemas de negócios foi causa tanto de alívio quanto de curiosidade. Depois de passar o dia escrevendo sobre escritórios fechados, fazendo entrevistas por Zoom, e aplaudindo os trabalhadores de saúde no final da tarde, os locais de trabalho que eu via na TV pareciam quase relíquias.

Havia neles algo de peculiar e revelador —como um cientista que observe um objeto conhecido no microscópio e o veja de modo inteiramente novo. Ao mesmo tempo, nos tornamos todos figurantes em nossas séries de TV sobre o trabalho, já que passamos a aparecer nas telas dos computadores de colegas que estavam trabalhando em casa, por meio de sistemas de videoconferência.

Esses dramas e comédias eram um lembrete da dinâmica do trabalho. Seu foco pode ser a política ou o combate ao crime, mas todos traziam alguns aspectos universais: problemas de recursos humanos, hierarquias, tensões, mentores.

Embora eu estivesse faminta de companhia diferente da oferecida pela minha família, dizer que as séries me despertaram uma nostalgia pela camaradagem do refeitório seria exagerar um pouco.

No entanto, assistir a trabalhadores em ação me fez sentir saudade das conversas inesperadamente saborosas, do glamour de roupas limpas (e mais ou menos elegantes), e do armário de material de escritório sempre abastecido.

Ambiente corporativo

Locais de trabalho são atraentes para os criadores de séries de TV. Afinal, eles eliminam a necessidade de explicar porque pessoas tão diferentes estão juntas, seja em um escritório, em uma imobiliária ou em uma loja. Justin Spitzer, roteirista e produtor da versão americana de “The Office” e criador de “Superstore”, explica os atrativos, em um email.

“Em um local de trabalho, um bando de pessoas com históricos muito diferentes, que podem nem gostar umas das outras, se veem forçadas a passar a maior parte do dia juntas”.

Jamie Demetriou, é criador e roteirista de “Stath Lets Flats” uma comédia em exibição no Channel 4 da TV britânica, e interpreta o personagem-título, um cipriota grego que trabalha (sem nenhuma competência) como corretor de imóveis no norte de Londres.

Ele diz que “para muita gente, o emprego que a pessoa tem não reflete sua paixão. Como resultado, essa pessoa não sente afinidade por aqueles com quem convive”.

Essa salada de personalidades interessa aos roteiristas, ele acrescenta: “Você acaba tendo uma variedade de personagens entre os quais existe fricção”.

Tédio no escritório

Os dramas de escritório não giram, é claro, em torno das tarefas cotidianas que os trabalhadores estejam realizando —o tédio de uma troca de emails comerciais ou do processo de definir o preço de venda de uma caixa de cereais —, mas sim em torno da condição humana.

Pergunto a respeito a Lucy Prebble, que tratou do assunto em peças de teatro como “Enron” e em roteiros para a série “Succession”, da HBO.

O ator Brian Cox em Succession (2018), da HBO - Divulgação

Ela diz que existem algumas profissões que os espectadores consideram como inerentemente interessantes —por exemplo, garoto ou garota de programa, uma profissão sobre a qual ela escreveu em sua adaptação para a ITV de “Secret Diary of a Call Girl”. No entanto, acrescenta Prebble, “mesmo isso pode se tornar bem tedioso, a não ser que você utilize a profissão para contar a história de uma pessoa”.

Tramas de negócios

Em “Succession”, que narra a brutal disputa pelo controle do Waystar RoyCo., um império de mídia controlado por uma família com semelhanças provocantes com os Murdoch, Prebble insiste em que são os personagens que sustentam a trama.

“Quando uma companhia chega ao tamanho da Waystar, o que importa é mais ‘dinheiro’ ou ‘negócios’ que um determinado produto”, ela diz. “Trabalho desse tipo só é realmente interessante quando existe uma dinâmica de relacionamentos, uma dinâmica entre os personagens, funcionando por sob a trama”.

Talvez ela tenha razão. Mas ao menos para esta telespectadora, os ambientes também atraem: a viagem de negócios a um castelo na Hungria, ou o momento em que Roman, o filho caçula e rebelde, troca seus ternos elegantes e seu escritório imaculado por um curso de gestão que exige que ele conviva com os trabalhadores em um parque de diversões, e fantasiado de peru.

Ou o lado feio da hierarquia que se revela quando um atirador armado entra no escritório e Tom, cunhado de Roman, sai empurrando pessoas para chegar primeiro à sala de pânico, gritando: “Abram caminho: executivos passando!”

Relacionamentos no ambiente de trabalho

O grande peso que o trabalho impõe ao amor e à vida é visível nas quatro temporadas da série francesa Call My Agent! Embora o trabalho pareça sedutor —glamoroso, criativo e cheio de intriga—, há custos: clientes temperamentais, política de escritório, relacionamentos complicados, falta de tempo para descanso.

À medida que a série se encaminha ao final, ficamos imaginando se Andréa Martel, a agente muito ambiciosa que a protagoniza, e que em um episódio começa a atender telefonemas de trabalho minutos depois de dar à luz, pode escolher outro caminho na vida —algo que muitos de nós contemplamos durante a pandemia.

Embora trabalhar de casa seja monótono para muita gente, não é como se faltasse tédio na maioria dos locais de trabalho.

Joe Moran, autor de “Armchair Nation: History of Britain in Front of the TV”, menciona tomadas na versão britânica original de “The Office” que mostram trabalhadores bocejando ou triturando papel, e também o jargão executivo surreal e os joguinhos de status de “W1A”, da BBC, que se passa em uma versão exagerada (mas talvez não muito) da rede pública de TV e rádio britânica.

“A comédia é capaz de retratar o absurdo essencial do trabalho”, diz Moran.

No começo da década de 2000, uma década antes que o sociólogo David Graeber popularizasse o termo “bullshit jobs”, “The Office” já estava explorando esse território. “A maioria de nós”, diz Spitzer, “se identifica ao ver chefes e colegas difíceis, que impõem tarefas com as quais não concordamos”.

E as pessoas que assistem absorvem tudo isso com prazer. Sempre que me sinto pouco apreciada por meu empregador, não recorro a um coach de carreira ou a um livro, mas sim à série “Mad Men”.

Em uma cena, o diretor de criação publicitária Dan Draper dá uma bronca na redatora Peggy quando ela se queixa de que ele foi premiado por uma campanha na qual ela trabalhou. Don rebate: “Esse é o seu trabalho! Eu te dou dinheiro, você me dá ideias”. Peggy: “Mas você nunca agradece”. Don: “O dinheiro é para isso”.

Há quem possa ver essa cena como prova de que os chefes são escrotos e tirânicos. Já eu encaro Don com mais simpatia: no trabalho, muitas vezes, a melhor estratégia é parar de resmungar e exercitar o autocontrole.

A questão, claro, é o que os roteiristas e produtores de TV farão do estranho mundo em que tantos de nós vivemos agora. Há alguns sinais, aqui e ali. A mais recente temporada de “Superstore”, filmada no final do ano passado, mostra os trabalhadores da loja de máscara, conversas por Zoom congeladas, e distanciamento social.

Quando a chefia não fornece equipamento de proteção suficiente para o pessoal, um dos trabalhadores diz: “Você precisa ver a questão do ponto de vista da empresa. Eles amam dinheiro, e não se importam se morrermos”.

Prebble esteve no set recentemente para a mais nova temporada de “Succession”, gravada em escritórios esvaziados pela pandemia —uma experiência surreal, ela diz.

“Alugamos espaços que estão em desuso... para executar um ritual que reproduz neles o trabalho que pessoas costumavam fazer, e gravar por alguns breves e vívidos momentos o que a vida costumava ser”.

Só os atores estavam autorizados a trabalhar sem máscara, e a tocarem uns nos outros, enquanto o restante da equipe usava equipamento de proteção completo, “para que mais tarde possamos mostrar aqueles momentos de forma segura a outros seres humanos, distintos, para ajudar a distrai-los de suas circunstâncias atuais e a fazer com que se sintam menos sozinhos”.

Houve experiências com o Zoom —especialmente “Staged”, da BBC, na qual os atores Michael Sheen e David Tennant interpretam versões fictícias deles mesmos, enquanto tentam se preparar para uma peça via videoconferência, e batem papo sobre suas vidas e as paranoias de suas carreiras (tudo isso filmado em videoconferência).

Mas outros roteiristas de TV tiveram dificuldades para se ajustar. Demetriou diz que é difícil encontrar inspiração para roteiros quando você está isolado do mundo.

“Você não percebe o quanto as conversas que tem no dia a dia o influenciam”.

Konrad Kay, que criou e escreveu “Industry”, com Mickey Down, diz que quando a série estreou, no fim do ano passado, os espectadores disseram que ver pessoas em restaurantes e festas lhes causava nostalgia, algo que os roteiristas obviamente não planejavam.

“Deixou as pessoas com saudade do escritório”, ele afirma.

Os espectadores vão querer assistir programas que mostram atores usando máscaras e respeitando o distanciamento social? Se a pandemia alterar permanentemente nossas vidas de trabalho, como isso será refletido nas telas?

Séries sobre corretores de imóveis, policiais e paramédicos dificilmente alterarão o retrato que pintam sobre os locais de trabalho —embora seja presumível que máscaras possam ser usadas. Mas os roteiristas que se concentram em séries sobre trabalhos de colarinho branco podem ter de aprender a conviver com um futuro talvez mais híbrido, com as pessoas divididas entre suas casas, espaços cooperativos de trabalho e escritórios.

Down, que está pesadamente envolvido na produção da segunda temporada de “Industry”, diz que “se você está escrevendo um drama sobre o local de trabalho e a história se passa depois de 2020, não seria sensato [desconsiderar o maior] choque que os locais de trabalho sofreram em 100 anos; será preciso reconhecê-lo. A dificuldade é não sabermos como isso afetará o trabalho em longo prazo”.

Kay não imagina que o mundo das finanças —foco de “Industry”— vá mudar muito, apontando que seus ex-colegas em bancos de investimento já voltaram ao escritório.

“Com algumas concessões – ou seja, mais distanciamento, algumas mesas desocupadas— as coisas parecem ter voltado ao normal, pelo menos em um lugar que conheço em primeira mão”.

Spitzer está trabalhando em uma nova série, “American Auto”, sobre executivos de uma grande montadora de automóveis de Detroit. Ainda que seja possível que os produtores incluam algumas cenas de trabalho híbrido, prefeririam não fazê-lo, ele diz.

“Não estamos pensando nisso como um mundo em que a pandemia não aconteceu, mas tampouco estamos tratando dela de qualquer maneira substantiva. Quando a série for ao ar, com sorte teremos deixado a Covid no passado”.

Eles estão trabalhando sob a suposição de que os locais de trabalho de 2022 não serão diferentes dos de 2019, diz Spitzer.

“Se não for esse o caso, nos ajustaremos quando chegar o momento”.

E quanto a histórias que mostram pessoas trabalhando de casa, ou em regime híbrido?

“Qualquer coisa que possa acontecer em um local de trabalho é uma oportunidade de criar uma história sobre ela”, ele diz.

A estranheza do período que vivemos hoje, ao mesmo tempo interminavelmente lento e ultrarrápido, é que séries que estão em produção agora podem, dentro de um ano, parecer tão arcaicas quanto “Mad Men”, que se passa nos anos 60.

Haverá máscaras? O distanciamento social ainda estará valendo ou voltaremos a lotar elevadores e refeitórios? Vacinas serão um assunto quente nas conversas de escritório?

Minha esperança é que um futuro híbrido ofereça novo material para comédia e drama —o conflito entre vida pessoal e vida profissional pode ser traçado de forma ainda mais aguda em casa. E como as baratas no apocalipse, a política de escritório com certeza sobreviverá ao distanciamento —e talvez até se intensifique.

Em lugar de conversas sigilosas no cantinho de uma sala de reunião, os trabalhadores de colarinho branco podem marcar encontros em parques, como espiões da guerra fria, enquanto planejam destruir uns aos outros.

E tenho certeza de que o escritório continuará a existir, de alguma forma, oferecendo um cenário para os nossos dramas pessoais, politicagem, rivalidades e idiotices. Por mais estranho que pareça dizer isso, mal posso esperar para ver o futuro do trabalho se desenrolando na minha telinha.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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