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Descrição de chapéu The New York Times

Mulheres sauditas arriscam tudo para fugir de restrições e abusos

Redes sociais ajudam a planejar e documentar fuga; caso na Tailândia traz tema à tona

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Ben Hubbard e Richard C. Paddock
Beirute (Líbano) e Nagkok (Tailândia) | New York Times News Service

Quando seu pai lhe batia, ou amarrava seus punhos e tornozelos para puni-la por supostas desobediências, a adolescente saudita sonhava com fugir, disse ela.

Desesperada para partir, porém, a mesma pergunta sempre a detinha: como sairia?

Se corresse para qualquer lugar do país, temia que a polícia saudita simplesmente a mandasse de volta para casa. 

A lei a proibia de viajar ao exterior sem a permissão de seu pai. 

A saudita Rahaf Mohammed al-Qunun no aeroporto de Toronto; após fugir, ela conseguiu visto no Canadá - Carlos Osorio-12.jan.19/Reuters

Mas durante umas férias da família na Turquia, quando tinha 17 anos, Shahad al-Muhaimeed viu sua oportunidade e a agarrou. Enquanto seus parentes dormiam, pegou um táxi e cruzou a fronteira da Geórgia, declarando-se refugiada, e deixou a Arábia Saudita para começar uma nova vida.

"Hoje eu vivo do jeito que eu queria", disse Muhaimeed, 19, por telefone de sua nova casa na Suécia. "Moro num lugar bom, que respeita os direitos das mulheres." 

A atenção mundial foi canalizada para a situação das mulheres sauditas depois que outra adolescente, Rahaf Alqunun, foi detida na Tailândia na semana passada enquanto tentava ir para a Austrália em busca de refúgio. Depois de uma campanha nas redes sociais, a ONU a declarou uma refugiada na quarta-feira (9). Ela deixou a Tailândia na sexta e voou para o Canadá, onde as autoridades disseram que recebeu asilo.

O fenômeno das mulheres que tentam fugir da Arábia Saudita não é novo, chamando a atenção do mundo já nos anos 1970, quando uma princesa saudita foi apanhada tentando fugir do reino com seu amante. O casal foi julgado por adultério e executado. 

Mas o número de jovens mulheres que avaliam e assumem o enorme risco de fugir da Arábia Saudita parece ter crescido nos últimos anos, segundo grupos de direitos, conforme mulheres frustradas pelas restrições sociais e legais recorrem às redes sociais para ajudar a planejar, e às vezes documentar, seus esforços de fuga.

"Todas essas mulheres que 15 anos atrás não seriam ouvidas hoje têm uma maneira de se expressar", disse Adam Coogle, que monitora a Arábia Saudita para a Human Rights Watch.

Algumas que ousam sair escapam em silêncio, viajando para os EUA ou outro lugar antes de pedir asilo --o que nunca é garantido. Desde que foram detidas na Turquia em 2017, as irmãs Ashwaq e Areej Hamoud, respectivamente com 31 e 29 anos, lutam contra uma ordem de deportação na Justiça, dizendo que temem por suas vidas se voltarem à Arábia Saudita. 

Mulheres sauditas caminham em evento perto de Riad - Fayez Nureldine-19.jan.18/AFP

Para outras mulheres como Alqunun, a publicidade teve um papel chave em seu êxito na escapada. Mas nem a atenção global garante que uma mulher não será repatriada. 

Em 2017, Dina Ali Lasloom, 24, pediu ajuda em um vídeo muito visto na internet depois que foi parada enquanto transitava nas Filipinas. Ela foi detida no aeroporto até que parentes chegaram e a levaram de volta à Arábia Saudita, onde não está claro o que lhe aconteceu. 

As mulheres que conseguem fugir devem enfrentar não só os esforços de suas famílias para forçá-las a voltar, como também os intensos esforços do governo saudita nesse sentido, muitas vezes envolvendo diplomatas locais que pedem a repatriação.

As mulheres que são repatriadas podem enfrentar acusações criminais de desobediência aos pais ou prejudicar a reputação do reino.

"Como mulheres sauditas, ainda somos tratadas como propriedade que pertence ao Estado", diz Moudi Aljohani, que se mudou para os EUA como estudante e pediu asilo. "Não importa se a mulher tem opiniões políticas ou não. Eles vão atrás dela e a forçam a voltar."

Os modos como as mulheres preferem fugir variam, mas entrevistas com cinco que conseguiram escapar mostraram temas comuns. Muitas tinham discutido seus planos em grupos de bate-papo privados com outras mulheres que já tinham fugido ou pretendiam fazê-lo.

Alguns meses antes de Alqunun deixar sua família durante uma viagem ao Kuait, por exemplo, uma amiga dela tinha fugido e chegado à Austrália como refugiada e estava dando conselhos sobre como escapar.

Muitas fugiram da Turquia, um lugar de férias popular entre os sauditas, para a Geórgia, onde os sauditas podem entrar sem visto. E outras preferiram a Austrália porque podiam pedir vistos pela internet, a única opção para mulheres que não podem ir a uma embaixada estrangeira.

Algumas disseram que fugiram por causa de abusos de parentes homens e porque sentiam que o reino não oferece meios de pedir proteção ou justiça. 

Outras queriam sair das estritas regras sociais islâmicas do país, que limitam o que as mulheres podem vestir, quais empregos podem ocupar e com quem podem socializar. Todas falaram em querer escapar das leis de guarda masculina do reino, que dá aos homens grande poder sobre a vida das parentes mulheres.

"É a guarda masculina que nos faz fugir da Arábia Saudita", disse Muhaimeed, na Suécia. "Esse é o maior motivo pelo qual as garotas fogem."

Na Arábia Saudita, todas as mulheres precisam ter um guardião homem, de cuja permissão precisam para se casar, viajar e se submeter a alguns procedimentos médicos. O guardião é geralmente o pai ou o marido, mas pode ser um irmão e até um filho.

O governante cotidiano do reino, príncipe Mohammed bin Salman, prometeu melhorar a vida das mulheres sauditas. Ele reduziu o poder da temida polícia religiosa, que assediava as mulheres que considerava vestidas inadequadamente, e no ano passado levantou a proibição a que as mulheres dirigissem carros. As sauditas hoje podem frequentar shows de música e exercer profissões que eram proibidas para suas mães.

Questionado sobre a guarda de mulheres no ano passado, o príncipe disse que a Arábia Saudita tinha de "encontrar uma maneira de tratar isso que não prejudique as famílias e não cause mal à cultura". 

Essas medidas aumentaram sua popularidade entre as mulheres sauditas, muitas das quais dizem que a guarda não é um fardo porque seus parentes homens cuidam bem delas. Outras fogem dessa leis buscando empregos em países vizinhos, como os Emirados Árabes Unidos, onde as regras sociais são mais brandas. 

Mas os críticos do sistema dizem que ele não dá recursos às mulheres que tenham guardiões controladores ou abusivos. 

Foi o que fez Nourah, 20, fugir para a Austrália. Seu pai tinha se divorciado de sua mãe antes de Nourah nascer, e ela foi criada principalmente pelos tios, segundo disse. Seu pai abusava dela, mas seus esforços para conseguir ajuda não eram correspondidos.

No ano passado, seu namorado quis se casar com ela, mas a família recusou porque achava que ele era de um meio social mais baixo, disse Nourah, que falou sob a condição de que só seu primeiro nome fosse usado. Seu pai começou a arranjar seu casamento com um homem que ela não conhecia e que queria proibi-la de trabalhar. Em outubro, na véspera da chegada de seu suposto noivo, ela fugiu.

Os homens sauditas usam um site do governo para cuidar das mulheres sobre as quais detêm a guarda, concedendo ou negando a elas o direito de viajar, por exemplo, e armando notificações para que recebam uma mensagem de texto quando sua mulher ou filha embarca em um avião. 

Para fugir, Nourah usou o telefone do pai para se dar permissão para viajar, desativou suas notificações e voou para a Turquia. De lá, viajou para a Geórgia e depois comprou uma passagem para a Austrália via Emirados Árabes Unidos, embora temesse que o governo emiratiano a apanhasse em trânsito e a devolvesse à Arábia Saudita.

"Para mim, era como uma missão suicida, mas eu não tinha outra opção", declarou.

No entanto, ela fez suas conexões e pousou em segurança em Sydney, onde solicitou asilo.

No exterior, as mulheres muitas vezes enfrentam avalanches de insultos e ameaças de morte de parentes e outros sauditas que acham que elas envergonham o país. 

Grupos de direitos humanos entendem as razões das mulheres que fogem de situações ruins, mas temem que fazer isso as coloque em grave perigo.

"Para as poucas que conseguem, há muitas que falham, e ser enviadas de volta depois disso as coloca em uma situação realmente perigosa", disse Coogle, da HRW. 

Ele disse que é difícil saber quantas mulheres fugiram do reino porque algumas não buscam a ajuda de grupos, e as que o fazem muitas vezes perdem o contato antes que fique claro se realmente tentaram sair ou, quando o fizeram, onde foram parar.

Ele disse que foi contatado por muitas mulheres na Arábia Saudita que queriam ajuda para fugir. Sua organização não as ajudou, disse ele, mas as ajudaria a buscar proteção jurídica se estivessem fora da Arábia Saudita. 

Falando de um hotel em Bancoc, onde esperava sob guarda para saber se outro país lhe concederia asilo, Alqunun já pensava em sua nova vida. Queria ir à faculdade e melhorar seu inglês, além de estudar arquitetura, segundo disse. 

Ela não esperava que a transição para a vida em um país desconhecido fosse fácil, mas não se arrependia. 

"Não há escapatória a não ser fugindo", disse ela. "Não há outra maneira."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves  

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