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Descrição de chapéu The New York Times

Cerco de polícia a igreja vira símbolo de protesto na Nicarágua

Manifestantes em greve de fome tiveram água e energia elétrica cortadas por forças de segurança

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Frances Robles
Masaya (Nicarágua) | The New York Times

Diana Lacayo nunca imaginou que uma greve de fome realizada em uma igreja se transformaria em um cerco de nove dias, com a polícia do lado de fora e a eletricidade e a água cortadas lá dentro.

Diana Lacayo, que fez parte da greve de fome na igreja em Masaya, na Nicarágua - Cesar Rodriguez/The New York Times


Mas para as autoridades nicaraguenses até esse modesto protesto era um desafio a ser esmagado.

Há quase dois anos, os nicaraguenses se levantam contra o domínio de uma família, os Ortega, acusados de transformar o país em um feudo pessoal: o presidente não tem limite de mandato, a primeira-dama é vice-presidente e seus filhos ocupam cargos de chefia em setores como gás e TV.

Diante da agitação, o governo adotou medidas inflexíveis para calar os dissidentes. E, apesar da economia em colapso, das sanções dos Estados Unidos e da emigração em massa, o presidente Daniel Ortega e sua mulher, a vice-presidente Rosario Murillo, ainda mantêm o poder com firmeza.

Enquanto ativistas pró-governo semeiam violência nas ruas, as vozes da dissidência são silenciadas por prisão e agressão.

Confrontados e roubados pelos apoiadores do governo, os manifestantes às vezes voltam para casa sem seus telefones ou sapatos.

"Se sairmos com uma bandeira, vamos para a cadeia", disse Lacayo.

O impasse na Igreja de San Miguel Arcángel deixou claro que nenhum lugar é um santuário.

Desesperadas para serem ouvidas, Lacayo e outras oito mulheres foram até lá para ver se uma greve de fome poderia conquistar a liberdade para seus maridos, irmãos e filhos —ativistas políticos que estão definhando nas prisões do governo.

Quando o movimento terminou, 14 pessoas, incluindo um padre católico, tinham passado mais de uma semana trancadas na igreja, cercadas pela polícia, enquanto os suprimentos básicos chegavam a quase nada.

"Eles nos deixaram como ratos em um buraco", disse o reverendo Edwing Román, que ficou preso na igreja com os manifestantes.

Para os nicaraguenses, foi mais um lembrete de que simplesmente se manifestar pode ter consequências graves.

No ano passado, parecia que o presidente poderia estar encurralado, quando os nicaraguenses realizaram seus maiores protestos em décadas.

Embora o governo tenha se recuperado, os grevistas em San Miguel Arcángel e outros manifestantes foram incentivados pela queda recente do presidente boliviano Evo Morales, aliado de Ortega.

Apesar de compartilharem a ideologia esquerdista e as inclinações autoritárias, porém, Ortega goza de algo que Morales não teve: os militares e a polícia nacional ficaram ao seu lado, protegendo-o como as forças de segurança fizeram por Nicolás Maduro na Venezuela e outros líderes autoritários ao redor do mundo.

Assim, na Nicarágua, os protestos levaram apenas a mais prisões, enquanto a crise assola o país. A economia está em queda livre e quase 100 mil pessoas fugiram.

Diante de tudo isso, Ortega e sua mulher oferecem um retrato da Nicarágua como um país muito mais seguro que seus vizinhos, e um novo slogan alerta para os perigos da ruptura: "Não se brinca com a paz".

O reverendo Edwing Roman, que acolheu a greve de fome de mulheres em sua igreja - Cesar Rodriguez/The New York Times


Ainda assim, a Nicarágua está longe de ser segura: enquanto eu fazia reportagem sobre o cerco à igreja, fui agredido dois dias seguidos.

A primeira vez foi uma pancada rápida de uma mulher zangada por ter sua foto tirada. Um dia depois, um grupo de ativistas do partido Frente Sandinista que se reuniram diante da capela me cercou, me derrubou no chão e tentou arrancar meu telefone. Depois alguém atirou uma pedra no pára-brisa do meu carro alugado enquanto eu fugia.

A polícia, que estava presente, não interveio.

Os protestos começaram na primavera de 2018, quando cidades inteiras se levantaram contra os Ortega.

Eles foram instigados pelos cortes de verbas na previdência social, mas logo se transformaram em uma reação generalizada contra o governo cada vez mais despótico.

A Suprema Corte havia sido fechada, os legisladores foram obrigados a sair, as eleições municipais, roubadas e os limites de mandato, abolidos.

Três meses depois, o governo recuperou as ruas. Em uma repressão esmagadora, a polícia disparou contra manifestantes que haviam montado barreiras por todo o país. Mais de 300 pessoas morreram na Nicarágua, incluindo 22 policiais.

Dezenas de manifestantes que queimaram prédios, ocuparam universidades durante meses e bloquearam ruas por semanas continuam presos, entre eles o filho de Lacayo, Scannierth Merlo Lacayo, 22, que foi condenado a cinco anos.

Em novembro, Diana Lacayo e outras mulheres com parentes presos se aproximaram de Román e perguntaram se poderiam usar sua igreja para fazer uma greve de fome. O padre concordou: "Pensando que este fosse um país civilizado, eu disse sim".

Román, 59, é um dos vários padres da Nicarágua que assumiram papéis de liderança na insurreição —um grupo de clérigos que não mediu palavras, descrevendo o governo com termos como "ditadura".

Diana Lacayo, 48, e os outros grevistas chegaram a San Miguel por volta das 9h de uma quinta-feira, e a polícia imediatamente cercou a igreja.

A certa altura, os policiais bloquearam as portas da frente e se recusaram a deixar Román entrar para rezar a missa —então os paroquianos rezaram do lado de fora.

O padre acabou entrando, mas no final da comunhão as luzes se apagaram. As autoridades cortaram a energia.

"O padre disse: 'Rápido! Encham os barris de água!'", disse José Román Lanzas, um coroinha de 13 anos. "É claro, o que o governo fez? Eles cortaram a água."

O garoto conseguiu sair, mas cinco pessoas, incluindo uma advogada e um ativista de direitos humanos que apoiavam as mulheres, ficaram presos lá dentro.

"Pensávamos que íamos para lá fazer uma greve de fome, não um cerco", disse Karen Lacayo Rodríguez, 42, ex-sandinista cujo irmão de 45, Edward Lacayo Rodríguez, cumpre pena de 15 anos por um caso de tráfico de droga que sua família disse ter sido encenado. (Ela não é parente de Diana Lacayo.)

Román disse: "Quando abrimos as janelas, a polícia do lado de fora dizia às mães: 'Vocês vão sair em sacos pretos, cheirando mal'. Nós éramos reféns".

Mães de outros prisioneiros tentaram realizar greves semelhantes em outras igrejas. Na catedral nacional de Manágua, apoiadores do governo invadiram e agrediram um padre.

"Estamos vivendo em um país sem regras", disse o padre Rodolfo López, cuja agressão foi registrada em vídeo. "Estamos falando de uma situação em que as pessoas deliberadamente, livremente, oferecem suas almas ao diabo", disse ele sobre o presidente e a primeira-dama.

A greve de fome na catedral terminou em um dia, mas em San Miguel a situação piorou.

As mulheres dormiam no chão usando cortinas como cobertores. As roupas doadas aos pobres foram distribuídas para que pudessem se trocar.
 

Karen Lacayo Rodriguez, que participou da greve de fome em uma igreja cercada durante nove dias pela polícia - Cesar Rodriguez/The New York Times


As mulheres em greve de fome vieram preparadas com bebidas eletrolíticas, e o padre dividiu o que havia na despensa da paróquia com as que não estavam em greve.

À noite, vândalos jogavam pedras e sacudiam o portão de metal da garagem. Ninguém pôde tomar banho.
Voluntários que tentaram levar água foram presos e acusados de tráfico de armas. Ainda assim, eles conseguiram levar vários galões e choveu duas vezes, oferecendo alguns dias de água e a chance de se lavarem.

Com o tempo, as baterias dos celulares acabaram. Eles enviaram uma mensagem aos apoiadores: se os sinos da igreja tocarem, alguém está em perigo mortal.

Com oito dias de impasse, o tráfego foi fechado por dois quarteirões e dezenas de policiais se alinharam do lado de fora. As portas e janelas estavam fechadas. A polícia não permitiu que ninguém entrasse, mas disse que os manifestantes poderiam sair a qualquer momento.

"Não escreva que nós os trancamos lá dentro", disse-me um policial. "Se eles quiserem sair, podem sair."
Ele então me mandou sair.

No nono dia, a comida e a água estavam acabando. Román, diabético, desmaiou duas vezes e teve delírio quando a taxa de açúcar no sangue caiu.

As mulheres disseram que o padre havia dito que estava disposto a morrer. Mas enquanto elas estavam preparadas para dar as próprias vidas à causa, não queriam entregar a dele. Elas usaram o telefone que tinham guardado para emergências —tinha apenas 1% de bateria restante— e cederam.

A Cruz Vermelha mandou uma ambulância e libertou as 14 pessoas.

"O padre estava em péssimas condições", disse uma grevista de fome, Martha Alvarado, 47, cujo filho, Melkissedex López Ferrey, 30, está cumprindo quatro anos por assalto depois de participar dos protestos no ano passado. "Mas quando a ambulância chegou ele não queria subir na maca. Ele disse: 'Vou sair daqui em pé'."

Várias das 14 pessoas passaram dias no hospital. Longe de se sentirem derrotadas, as mulheres se consideravam vitoriosas: a notícia do cerco à igreja provocou a condenação internacional.

O governo havia dito que muitos manifestantes estão armados e que a mídia ignorou as atrocidades que cometeram, incluindo assassinatos e queima de prédios do governo. Manifestantes como Karen Lacayo refutam as denúncias.

"Eles dizem que temos mísseis, isso e aquilo, mas a única arma que temos são a bandeira e a nossa voz", disse ela. "Queremos uma Nicarágua livre."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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