Trump tenta lucro fácil com derrota dos EUA no Afeganistão
Após 18 anos e 157 mil mortos, Taleban está próximo de voltar ao poder em Cabul
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
O acordo para a pacificação do Afeganistão é uma derrota anunciada dos Estados Unidos, a admissão da impossibilidade de continuar uma guerra infrutífera que durou pouco mais de 18 anos e custou quase 160 mil vidas.
Para o presidente Donald Trump, contudo, o inédito acerto com o grupo fundamentalista Taleban servirá como material de campanha eleitoral. Afinal de contas, o americano prometera retirar os EUA de campos de batalha mundo afora.
Isso pode dar certo momentaneamente, até porque o que acontece em Cabul ou Kandahar deixou de interessar ao público ocidental há bastante tempo.
Além disso, diferentemente do que ocorreu quando os soviéticos desocuparam o Afeganistão em 1989 e os americanos deixaram os mujahedin que lutaram com suas armas para se matar entre si, desta vez Washington promete manter tropas no país até que o Taleban e o governo afegão se acertem.
Não parece um arranjo muito promissor, contudo. Hoje o Taleban tem grande controle territorial do Afeganistão (talvez 70% do país), e as negociações internas de paz têm tudo para descambar em conflito ou na simples retomada de poder pelos mulás que um dia abrigaram Osama bin Laden.
Trump dirá que fez o prometido, é verdade, mas ao fim está apenas ratificando o fracasso de Washington. O objetivo declarado da intervenção americana no país, em 2001, foi o de acabar com o regime aberrante que protegeu os mentores dos atentados de 11 de setembro daquele ano.
O Taleban e seus hóspedes da Al Qaeda foram escorraçados de Cabul, é fato, mas a guerra continuou. Em 2010, os EUA chegaram a ter quase 97 mil soldados no país, e nem assim os fundamentalistas foram erradicados.
Inicialmente, Washington achou que seria possível importar a ideia de uma democracia ocidental e, equipando as Forças Armadas afegãs, deixar o país de uma forma honrosa.
Seria uma forma de evitar o fiasco pós invasão soviética, quando a falta de apoio aos vitoriosos locais deu espaço a uma guerra civil horrenda e a ascensão do Taleban, grupo fomentado pelo vizinho Paquistão, que queria ganhar a chamada profundidade estratégica e ter um aliado às costas no seu conflito com a Índia.
Deu errado. Conceitos democráticos não são valores universais entre as tribos do país, que há 2.500 anos lidam com potências estrangeiras que vêm e que vão.
O país ganhou o apelido de “cemitério dos impérios” devido às derrotas dos britânicos (1842 e 1919) e dos soviéticos (1989) nas mãos dos locais.
É uma meia verdade, dado que o Estado afegão é uma criação recente, de 1747, e mesmo assim o elemento estrangeiro sempre esteve presente.
Mas também é fato que, até aqui, os afegãos sempre acabaram se dando melhor no embate com os invasores. O acordo atual prova isso, e legitima no exterior o mesmo Taleban que foi vendido como a encarnação da barbárie no começo deste século 21.
Não sem motivo. O regime dos mulás instaurado em 1996 era de uma brutalidade pouco vista em tempos modernos, a começar pela nulificação das mulheres na vida pública. A supressão da sociedade civil, regras medievais de conduta e violência extrema no exercício do poder eram suas marcas.
Havia nuances também. Apesar de sua crueldade, os talebans também eram identificados com o ideário de resistência nacional, por serem da etnia majoritária do país, os pashtuns (40% dos 38 milhões de afegãos).
O líder do grupo, o mulá Muhammad Omar (morto em 2013), era reverenciado no sul do país como uma espécie de santo guerreiro.
Nada disso interessou ao Ocidente, tanto que empresas europeias e americanas chegaram a negociar a construção de gasodutos no país com os talebans. Até que o regime resolveu abrigar a turma de Bin Laden, que de lá planejou o movimento de abertura do século 21 no 11 de setembro.
O preço foi alto. Segundo o projeto Custos da Guerra, da Universidade Brown (EUA), morreram 157 mil pessoas de 2001 até o fim de 2019 devido ao conflito, a maioria delas (64 mil) civil. O Taleban e outros grupos perderam 42 mil combatentes, e os EUA, 2.300 soldados e quase 4.000 mercenários.
O Taleban chegará numa posição de força para as negociações com o frágil presidente Ashraf Ghani, que significativamente não estava no anúncio do acordo em Doha.
Recém-reeleito num pleito no mínimo duvidoso, que levou meses para ter o resultado confirmado, ele não tem base de apoio popular —é visto mesmo pela elite do país como um marionete dos EUA.
Se a história recente prova que trazer combatentes para a mesa pode ser o melhor jeito de pacificar uma região, como aconteceu em 1996 com o IRA (Exército Republicano Irlandês) na Irlanda do Norte, há muitos motivos para ser cético acerca do sucesso do acerto afegão.
Os 8.500 soldados americanos remanescentes poderão até garantir que o processo de paz aconteça, mas arriscam acabar destinados a ser a guarda de honra para o funeral do governo de Ghani.
Um cenário otimista verá o Afeganistão com um dos satãs do Ocidente partilhando o poder; o pessimista varia de uma nova guerra civil à simples tomada de Cabul pelos fundamentalistas.
Em qualquer caso, o fantasma do mulá Omar deve estar dando risada em alguma caverna do Hindu Kush.
Receba notícias da Folha
Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber
Ativar newsletters