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Para roteiristas, morte do presidente do Haiti daria boa série, mas autores precisam amarrar pontas soltas

Falta de respostas e conexões com Estados Unidos tornam a história instigante, dizem autores

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São Paulo

Um grupo de mercenários formado por ex-militares de alta patente da Colômbia, com treinamento militar dos Estados Unidos, mata o presidente autoritário de um país caribenho. Eles se escondem na embaixada de um país que não é reconhecido por 179 dos 193 estados-membros da ONU (Taiwan) e trocam tiros com a polícia.

Entre os possíveis mandantes estão um político da oposição e um primeiro-ministro que deveria ter deixado o cargo na data do crime, mas que acabou tomando o controle do país.

O enredo do assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, "parece coisa de filme", "não demora para sair na Netflix", "é trama de cinema", repetiram leitores em comentários pela internet desde o dia do crime, na madrugada do último dia 7.

Polícia haitiana patrulha ruas de Porto Príncipe após assassinato do presidente Jovenel Moïse - Ricardo Arduengo/Reuters

A Folha, então, perguntou a roteiristas de cinema e TV o que acham da história, que foram unânimes: o caso daria uma boa série de TV, mas os roteiristas terão trabalho para colocá-la no ar.

"Posso te dizer uma coisa que ouvi uma vez do Guel Arraes: 'A vida é excelente roteirista. Mas só entrega o primeiro tratamento'. Que dizer, por melhor que seja a história real, só funciona como ficção com muito trabalho de dramaturgia", diz Braulio Mantovani, que tem em seu portfólio "Cidade de Deus", "Tropa de Elite" e "VIPs", entre outros filmes do gênero.

Davi Kolb, um dos autores da série policial "Bom Dia, Verônica", diz que "a realidade prescinde de verossimilhança, é maluca, é absurda mesmo", e o trabalho do roteirista é justamente construir um universo que seja crível, estabelecendo relações entre os fatos e os personagens e buscando as motivações do crime.

Ele afirma que o caso é instigante justamente pelas pontas soltas, que podem transformá-lo em um bom recurso narrativo. Para Kolb, uma boa maneira de contar a história seria, por exemplo, "pelos olhos de um policial que caiu de paraquedas na história, que não sabe quase nada do caso, e vamos juntos entendendo melhor o que aconteceu."

"Um crime tem o potencial de desestabilizar toda uma comunidade. A gente tem a necessidade de entender e desvendar o crime, para restabelecer uma espécie de ordem. Sem conseguir entender o que aconteceu, é como se nossa vida estivesse eternamente ameaçada. É por isso que a história é instigante", resume.

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Para Ana Reber, autora de "Sessão de Terapia" e "Rua Augusta", esta "é uma das histórias que a gente brinca, em sala de roteiro, que seriam pouco críveis na ficção", afirma. Ela diz que, se fosse escrever a série de TV, colocaria uma pitada geopolítica, explorando os laços com os Estados Unidos. Além do treinamento militar dos colombianos pelo Pentágono, ao menos dois haitianos suspeitos foram informantes da DEA (agência antidrogas dos EUA). A empresa que teria contratado os mercenários fica na Flórida, no sul dos EUA, onde vive também um médico acusado de ser um dos mandantes do crime.

Mas, no fim, por mais que a série seja sobre política, "quem assiste muita série quer saber quem tá pegando quem, quem se apaixonou por quem. Seria interessante trabalhar bem esses personagens, dar um molho para essas relações", diz ela.

"Essa cena do assassinato, a fuga para a embaixada de Taiwan, a troca de tiros, é muito boa de escrever. Com certeza daria uma excelente série de TV. Se alguém for fazer, me chama", brinca.

A falta de respostas para o caso lembra ainda um episódio piloto de uma série, diz Chico Mattoso, que escreveu "Pico da Neblina". "Se um roteirista tentasse me vender essa história eu ia querer ouvir mais, saber aonde ele quer chegar. Por enquanto parecem mais pedaços de uma história a ser contada. Mas é uma levantada de bola dramatúrgica muito cativante, que fisga nossa curiosidade."

Para o autor, "conhecendo a história política da América Latina, é difícil pensar no que seria inverossímil". "Ao mesmo tempo que parece uma ação de violência super planejada, é desastrada, porque a maioria já foi presa. Me faz lembrar um filme dos irmãos Cohen", conclui, citando os autores de "Onde os Fracos Não Têm Vez" e "Fargo".

A morte do presidente do Haiti gerou uma nova onda de instabilidade no país. O funeral do presidente Jovenel Moïse, que aconteceu na sexta (23), foi marcado por protestos e repressão policial, com tiros e gás lacrimogêneo. O país registrou episódios de falta de combustível e de alimentos.

Ainda não há conclusão das investigações sobre os mandantes e os motivos do crime, e mais de 20 pessoas foram presas —a maioria militares colombianos reformados.

O país também enfrentou uma crise sucessória. Claude Joseph, primeiro-ministro que deveria ter deixado o posto no dia do assassinato, assumiu a presidência e ampliou seus poderes após decretar estado de sítio. Após perder apoio internacional, Joseph costurou um acordo com Ariel Henry, que havia sido nomeado para o posto, e passou o cargo na última terça (20), quando foi empossado Ministro das Relações Exteriores.


QUEM É QUEM NA MORTE DO PRESIDENTE DO HAITI

VÍTIMA

  • Jovenel Moïse: presidente do Haiti morto em 7 de julho

MANDANTES SUSPEITOS

  • John Joël Joseph: ex-senador, opositor do Tet Kale, partido de Moïse, está foragido e é apontado pela polícia como um dos mandantes do crime
  • Christian Emmanuel Sanon: ​médico e pastor, vive na Flórida, no sul dos Estados Unidos, e também tinha pretensões políticas, segundo a polícia; está preso
  • Claude Joseph: primeiro-ministro no momento da morte, apareceu nas investigações, de acordo com a imprensa colombiana, como suspeito de ser um dos mandantes do crime para tomar o poder; a polícia haitiana negou que ele seja investigado

OUTROS ENVOLVIDOS

  • CTU: empresa de segurança com sede em Miami; investigação aponta que foi a responsável por contratar militares colombianos aposentados para executar o crime
  • Militares aposentados colombianos: investigação indica que mais de 20 ex-militares estão envolvidos, a maioria dos quais com experiência nas forças especiais da Colômbia; 18 colombianos estão presos e três foram mortos. Autoridades dizem que a maioria deles foi contratada como guarda-costas e não sabia que a missão era matar o presidente
  • Estados Unidos: operação foi planejada a partir da Flórida, nos EUA, segundo as investigações, e dois antigos informantes da DEA (agência antidrogas dos EUA) são suspeitos no crime; Pentágono admitiu que no passado treinou alguns dos militares colombianos
  • Seguranças de Moïse: autoridades investigam como os criminosos entraram na casa do presidente sem dificuldades

OUTROS ATORES

  • Ariel Henry: havia sido nomeado primeiro-ministro e iria assumir o cargo no dia da morte do presidente, o que não ocorreu devido ao assassinato. Após o crime, Henry reivindicou o posto, ganhou reconhecimento internacional e costurou um acordo para assumir o poder. A troca de comando aconteceu na terça-feira (20)
  • Joseph Lambert: Líder do Senado, foi indicado pela Casa para comandar o país após a morte de Moïse, mas Claude Joseph continua como líder de fato do país

Relembre

7 de julho: Criminosos invadem a residência particular de Jovenel Moïse, matam o presidente e deixam sua mulher gravemente ferida
7 de julho: Grupo se refugia na embaixada de Taiwan, onde troca tiros com a polícia e se rende
8 de julho: Polícia identifica 28 suspeitos de matar o presidente, dois haitianos com dupla nacionalidade americana e 26 ex-militares colombianos de alta patente, que disseram terem sido contratados como seguranças por uma empresa da Flórida
11 de julho: Haiti prende médico que vive nos EUA e o acusa de ser um dos mandantes do crime
14 de julho: Polícia haitiana acusa ex-senador da oposição de ser um dos mandantes
15 de julho: Imprensa colombiana afirma que o primeiro-ministro passou a ser investigado como um dos possíveis mandantes, o que a polícia haitiana nega
18 de julho: Em tratamento nos EUA, viúva do presidente recebe alta e retorna para o Haiti
20 de julho: Após perder apoio internacional, primeiro-ministro Claude Joseph renuncia ao cargo em favor de Ariel Henry, que havia sido nomeado mas não tomou posse devido ao assassinato

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