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Ana Luisa Escorel

Um cravo vermelho em terras hostis

Reunião insólita entre dissidente português e estudante brasileira não anteviu riscos democráticos

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Ana Luisa Escorel

Designer e escritora, é autora, entre outros, de "O Fastio do Diabo" (ed. Ouro sobre Azul)

As comemorações pelos 50 anos da Revolução dos Cravos nos confrontam com a tragédia —política, econômica e social— instalada em 2016 quando, por pouco, o Brasil não foi jogado num retrocesso que nem dezenas de anos de intervenções virtuosas conseguiriam contornar.

A festa mostrou o empenho dos portugueses em aderir a vias que defendem os interesses do país e de seu povo, não a governos que alimentam os cultores do privilégio. E, apesar de atingida pelo travo da comparação, fui atrás do 25 de abril para reviver a lembrança de fatos ocorridos entre 1971 e 1984, ligados só de maneira indireta à Revolução dos Cravos.

Revolução dos Cravos em Portugal - Imago/Zuma/Keystone via DW - Imago/Zuma/Keystone via DW

Anos a fio o Brasil acolheu intelectuais e militantes políticos, empurrados para fora do país pela ditadura que manteve Portugal no atraso, de 1933 a 1974. Entre eles, o capitão do Exército Manuel Pedroso Marques, ativo na resistência a Salazar como tantos jovens militares naquele tempo, que veio para cá ficando de 1964 a 1975, intervalo no qual gravitou em torno do livro como editor na Expressão e Cultura.

Eu, por minha vez, em 1971, ainda estudante, andava às voltas com uma análise do aspecto gráfico do livro brasileiro e tinha concebido um levantamento de dados a partir das necessidades apontadas pelo tema. Então saí a campo atrás de informações que me permitissem fechar um quadro entrevistando capistas, diagramadores, designers e casas editoras.

Findas as entrevistas, no exame do material constatei que o testemunho de Pedroso Marques se destacava dada a clareza com que expunha o pensamento e a segurança na lida com o processo de edição e fabricação de livros. Sem esquecer a polidez da acolhida, que não traduzia a circunstância: o tempo gasto com uma estudante, por um empresário ocupado.

O encontro se estendeu e, para meu espanto, aos poucos o editor foi se desviando do propósito da reunião com revelações que indicavam a existência de um movimento organizado, de contestação ao governo português. Como naquele momento Portugal vivesse um regime sinistro e o Brasil não ficasse atrás, estranhei a imprudência. Ouvi o que podia não passar de mera bravata, evitando reações explícitas em qualquer direção, no comportamento próprio daqueles tempos, quando a cautela definia o tom nos encontros furtuitos. Saí agradecida e acabei esquecendo o episódio, não sem antes manifestar estranheza aos de casa, com o que me parecera uma incontinência verbal arriscada.

Cerca de 13 anos depois —capitão, promovido; estudante, senhora de seu ofício; e Portugal, livre do arbítrio—, novo encontro. Dessa vez na casa de amigos que recebiam o primeiro-ministro Mário Soares, em visita ao Brasil. Na comitiva, o assessor militar do governo, coronel Manuel Pedroso Marques, atestado vivo de que o capitão da década de 1970 tinha sido imprudente, mas não fantasioso.

Antigo editor e antiga estudante se reencontraram lembrando, com afeto, da reunião insólita em tempos sombrios —embora sem meios, naquela noite, de antever que o risco antidemocrático longe de superado (como se pensava nos anos de 1980) voltaria em golfadas sucessivas de retrocesso, expondo a vitalidade das forças do atraso, dramaticamente fortalecidas nas últimas décadas nos quatro cantos do globo.

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