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Enchentes pautam ano eleitoral em Porto Alegre após falhas no sistema de prevenção

Impactos da maior tragédia climática já registrada no Rio Grande do Sul ainda são sentidos na capital gaúcha

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Porto Alegre

Dias de chuva sempre foram motivo de preocupação para Cristiane Ferreira Furquim, 39. Assim que o barulho dos primeiros pingos ecoava no teto de fibra, ela já voltava os olhos para o que acontecia no valão que corre nos fundos de casa.

"Eu não dormia. Quando começava a chover, já passava a noite acordada. Essa janela vivia aberta", conta a moradora da vila Elizabeth, no bairro Sarandi, zona norte de Porto Alegre. "Sempre que chove muito, entra aqui. Sempre".

Dentro de casa, a máquina de lavar, a geladeira e os móveis ficavam mais de 30 centímetros acima do chão. "Toda a casa era em cima de tijolos", disse.

Cristiane Ferreira Furquim ficou desalojada por três meses após sua casa ficar submersa - Folhapress

O céu nublou naquela segunda-feira, 29 de abril, e a previsão de temporais fortes causou preocupação. A água transbordou e oscilava no pátio, a chuva não dava sinal de trégua e as notícias que chegavam do interior pela TV eram assustadoras.

Na noite de 2 de maio, a água subiu muito rápido e os primeiros vizinhos deixaram o bairro. Levando bolsa e os pertences que conseguia carregar, Cristiane saiu de casa no dia seguinte e se abrigou com parentes em uma área segura no bairro Partenon acompanhada do filho Vitor Gabriel, 16.

Dois dias depois, sua casa estava debaixo d'água, com apenas uma ponta do telhado visível para quem passasse de barco. No mesmo dia, o lago Guaíba alcançou o nível histórico de 5,33 m, e Porto Alegre se tornava o novo epicentro da pior tragédia climática do Rio Grande do Sul.

Porto Alegre tem um sistema de proteção contra cheias composto por 68 km de diques, 2,65 km de muro na avenida Mauá, 14 comportas e 23 Ebaps (Estação de Bombeamento de Águas Pluviais). Ainda assim, uma série de falhas tornaram o sistema ineficaz para impedir que 160 mil pessoas fossem atingidas diretamente pela maior enchente em 252 anos de história da capital gaúcha.

O aeroporto internacional Salgado Filho segue com a pista fechada até outubro, e o sistema de trens Trensurb, que transportava 110 mil pessoas por dia na região metropolitana, só voltará a operar nas estações do centro em dezembro.

Ainda se vê a marca da lama em paredes e até telhados, parte da paisagem de uma cidade que terá a prevenção a desastres como pauta inescapável nas eleições municipais em outubro.

Na sexta-feira em que Cristiane saiu de casa, o muro da avenida Mauá foi insuficiente para impedir que a enchente tomasse as ruas do centro histórico de Porto Alegre depois que o Guaíba transbordou pelos dutos da Ebap 18.

O caos aumentou nos dias seguintes, quando a energia da Ebap 16 foi cortada devido ao risco elétrico de uma inundação, e a água subiu por bueiros e bocas de lobo nos bairros Cidade Baixa, Menino Deus e Praia de Belas.

"O que aconteceu foi um colapso em diversas escalas", diz o engenheiro ambiental Iporã Possantti, do IPH (Instituto de Pesquisas Hidrológicas) da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Possantti diz que "o sistema tem sido negligenciado a longo de muitos anos", mas critica a gestão atual, do prefeito Sebastião Melo (MDB), por não ter agido o suficiente depois dos alertas das enchentes de setembro e novembro de 2023.

Ele aponta que alguns bairros que já tinham reativado suas casas de bombas sofreram menos quando o Guaíba voltou a subir na metade do mês, o que comprovaria que a inundação era evitável. "Tinha que ter os geradores já esperando prontos para ligarem a saída de bombas [na primeira elevação], como aconteceu na segunda. A gente tinha evidências de que a coisa estava precária", diz.

Projetos para contenção de cheias eram discutidos desde a enchente de 1941, de 4,76 m. O nível foi usado como referência para o projeto do atual sistema de proteção que começou a ser executado após a cheia de 1967, e inaugurado ao longo dos anos 1970.

"Eu sou o 15º prefeito de lá para cá, desse sistema que nasceu na década de 60, e ele se mostrou insuficiente pela quantidade de chuvas que chegaram na cidade", disse Sebastião Melo, que concorre à reeleição.

"O sistema de fato foi submetido a um grande teste", disse Maurício Loss, diretor do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos). "Todas essas falhas foram identificadas: comportas insuficientes, diques construídos em cotas inadequadas, e também alguns erros de concepção de projeto das casas de bombas."

Ele diz que as primeiras "obras paliativas" nos diques começam ainda em agosto enquanto se realizam estudos para as correções definitivas, previstas para 2025. Segundo Loss, alguns diques têm pontos mais de 2 m abaixo da cota prevista no projeto original.

As intervenções nas estações de bombeamento devem ter início em setembro e preveem elevação da rede elétrica e a instalação de bombas submersíveis e geradores fixos. Além disso, 8 das 14 comportas do sistema, substituídas por um muro de concreto.

As obras fazem parte do plano de R$ 510 milhões para drenagem e segurança hídrica anunciado pela prefeitura em junho, com previsão de recursos próprios, possíveis empréstimos e parcerias com o governo federal, que anunciou R$ 6,5 bilhões para a área no estado pelo Novo PAC Seleções.

"Entre anunciar o PAC e sair o dinheiro é uma distância muito grande. O tempo do PAC é um e o tempo da cidade é outro", diz Melo, que já criticou o governo Lula (PT) pelo que percebe como demora na liberação de verbas de reconstrução.

A deputada federal Maria do Rosário, candidata do PT à prefeitura, diz que Melo não quer assumir para si a responsabilidade sobre as falhas do sistema.

No debate promovido pela TV Bandeirantes, há três semanas, o assunto dominou as discussões. Juliana Brizola (PDT) foi outra a criticar a gestão de Melo pela falta de investimentos na área.

O candidato Felipe Camozzato (Novo) se uniu ao prefeito em reclamações sobre o papel do governo federal na resposta ao desastre.

Sobre críticas feitas à atuação do DMAE, Loss diz que o departamento está "prestando todos os esclarecimentos e comprovando que tudo estava em dia".

O risco de um novo padrão para enchentes em Porto Alegre impõe a procura por soluções para áreas vulneráveis.

"É preciso uma política de moradia digna e de recomposição da mata ciliar dessas regiões", diz o líder comunitário Tiago Santos, coordenador do coletivo de arte urbana Viva Elizabeth, que desenvolveu uma rota turística de grafitti no Sarandi.

O acesso para a rua de Cristiane é parte da rota, e a ideia foi abraçada pela comunidade por revitalizar uma área abandonada. No pós-enchente, os moradores se organizaram para lavar os murais.

"O Sarandi convive há anos com alagamentos e nenhum dos nossos esforços para ressignificar esse espaço pode ter pleno êxito sem um projeto urbano complexo, que permite ao bairro e aos seus moradores conviverem de forma pacífica com as águas e o meio ambiente", disse Tiago.

No dia 3 de agosto, Cristiane finalmente voltou para casa. Está feliz, mas diz que vive "sempre com aquele medo", e não esconde a impaciência com um vazamento na caixa d'água que goteja no pátio sem parar.

Ela não quer deixar o Sarandi, e espera um dia conseguir se mudar para outro lugar do bairro "onde não tenha o perigo de ‘choveu, a água entrou’". Enquanto não tem condições para sair de onde está, se previne como pode. Os móveis e eletrodomésticos, antes em cima de tijolos, agora vão ficar sobre blocos empilhados de pedra.

"Eu queria ter uma casa que eu não precisasse disso, que eu colocasse meus armários do jeitinho que tem que ser, sem me preocupar que tem que colocar em cima da pedra porque a água vai vir e vai levar o pouco que eu consegui."

O QUE DIZEM OS PRINCIPAIS PRÉ-CANDIDATOS À PREFEITURA DE PORTO ALEGRE SOBRE O TEMA:

Sebastião Melo (MDB): "Mesmo sendo uma obrigação do governo federal, nós já começamos a revisitar o sistema de proteção de cheias. Estamos contratando um estudo com o professor Tucci [Carlos Tucci, professor emérito da UFRGS e diretor da consultoria ambiental Rhama-Analysis] que vai rever todo sistema, inclusive onde não tem proteção. Isso é importante para a segurança das pessoas, e para o empresariado que está refazendo os seus negócios e tem que ter segurança para reinvestir na cidade."

Maria do Rosário (PT): "Nosso plano de governo foca em recuperar, qualificar e ampliar o sistema de proteção contra enchentes, prejudicado pela falta de manutenção. Implementaremos um plano de Drenagem Urbana e desassoreamento, fortalecendo o DMAE público e realizando concursos para servidores. Vamos reconstituir o Sistema Municipal de Meio Ambiente, valorizar a coleta seletiva e toda a rede de tratamento e reciclagem de resíduos, além de reconhecer o trabalho de catadores e catadoras."

Juliana Brizola (PDT): "Primeiramente, é necessário realizar uma recuperação e revisão completa do sistema de proteção, que atualmente sofre com a falta de manutenção e a conivência da administração municipal com sua deterioração. A instalação de geradores nas casas de bombas é fundamental para garantir o funcionamento contínuo do sistema de drenagem, mesmo em situações de falta de energia. Além disso, a criação de um sistema de monitoramento e alerta eficiente para avisar a população."

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