Jairo Marques

Assim como você

Jairo Marques - Jairo Marques
Jairo Marques
Descrição de chapéu pessoa com deficiência

A dificuldade de sermos nossos melhores amigos

As diferenças fazem a gente ter de carregar uma mala pesada de recalques, de desaprovações, de manuais não seguidos

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A moça de pele bem branca, risonha de olhos e dentes, era levada para o mar carregada nos braços por uma outra moça, essa morena com ar de simpatia. Em dado momento do vídeo, a que estava com a missão de confortar no colo o corpo da outra, ajeita o peso que cuida com as pernas. Logo estão as duas se deliciando na água.

Ana, quem precisava do apoio, tem uma deficiência grave que faz de sua estrutura de ser única, retorcida e com movimentos bem breves. Em dado momento da gravação, ela diz mais ou menos assim:

Uma mulher está deitada de costas em pleno mar; ela é amparada por uma pessoa que usa colete salva-vidas e boné; ao fundo se vê montanhas e mar aberto
Uma mulher tetraplégica toma banho de mar na praia do Sueste, em Fernando de Noronha (PE) com auxílio de uma monitora - Apu Gomes/Folhapress

"Os olhares ainda me deixam desconfortável. Meu corpo ‘deformado’ chama atenção. Vejo as rirem, apontarem, cochicharem. Mas entendi que se eu deixar de entrar por eles, só eu perco."

Ser do "grupo da diversidade" implica conviver, por fatores que não necessariamente foram escolhidos ou criados por si mesmo, ter uma dificuldade tremenda de ser amigo de si mesmo, de poder e ter coragem de tomar decisões e fazer escolhas que acomodem unicamente o seu desejo, a sua vontade, o lugar que você prefere.

Por não andar, não ver, não ouvir ou até mesmo não lidar com a vida da forma mais elementar, mais aceita, menos exótica diante do que é convencional ser sujeito é raridade, ser objeto é a prática.

As diferenças fazem a gente ter de carregar uma mala muito pesada de recalques, de desaprovações, de manuais não seguidos. Desfazê-la não acontece quase nunca porque os destinos não são apenas distantes, são ainda inóspitos e pouco receptivos e extremamente questionadores sobre nossas razões de estarmos ali.

Não é somente uma questão de vontade sermos mais amigos de nós mesmos diante nossos cambitos tortos, nossa mente inquieta, nossa ausência de partes. Às vezes, agradamos o outro e desagradamos a nós mesmos não como opção, mas como único caminho de seguir diante nossas vulnerabilidades.

Dessa forma, o amigo que contestaria a injustiça, que gritaria diante do abuso, que não toleraria certas atitudes, que brigaria por um amor, que se revoltaria com uma traição, que jamais te levaria para uma grande enrascada, silencia-se, ausenta-se, foge.

Mas assim como a Ana entrou no mar em braços alheios e sobre o espiar curioso e desabonador dos outros, também em outro canto uma atleta tetraplégica denunciou abusos que sofreu de cuidadores, crianças atípicas vasculham espaços na escola e nas brincadeiras para serem amigas de seus aprendizados. Aos poucos, talvez estejamos tendo coragem de sermos melhores para nós mesmos.

Peguei emprestado do gênio José Saramago, em "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", a reflexão a respeito do sermos amigos de nós mesmos, embora haja nela um colar muito atual e bem menos sutil, mais ditador de regras, dos xaropes de redes sociais, a respeito do impor as próprias vontades.

De todos os ganhos possíveis e esperados com a inclusão, com a mistura das diferenças humanas, entendo que tornar as pessoas mais autênticas, mais livres em suas maneiras de se manifestarem ou mesmo de se calarem, mas por genuína vontade, seja o ganho mais transformador.

Amigos, os melhores amigos, e mais uma vez parafraseando o ganhador do Nobel de Literatura, não deixam o lume que nos faz persistir se apagar, muito pelo contrário, eles sempre vão acender as luzes que mais nos libertam.

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