Jairo Marques

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Descrição de chapéu pessoa com deficiência

Em nome da proteção, famílias sufocam avanços inclusivos

Decreto de governo de SP, que libera assistente particular em sala de aula, afronta princípio de construção coletiva da educação inclusiva

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Um dos temas mais áridos a respeito de diversidade e inclusão é o desenvolvimento de autonomia por pessoas com deficiência. É complexo reconhecer, mas fundamental externar, que famílias ainda sufocam seus entes com questões físicas, sensoriais e, principalmente, intelectuais, em nome do que defendem como cuidado, atenção e afeto.

Escrevo à luz de um recente decreto do governo de São Paulo que liberou a entrada de assistentes pessoais de alunos com deficiências severas dentro das salas de aula da rede estadual de ensino. O tal auxiliar tem de ser bancado pelos responsáveis do estudante ou ser ele o próprio parente, em bom dialeto tupiniquim, a mãe.

Em uma sala de aula, uma mulher de roupa escura está agachada em frente a um garoto em uma cadeira de rodas
Estudante com deficiência recebe apoio de profissional na Emef Irineu Marinho, em São Paulo (27.ago.21) - Danilo Verpa/Folhapress

Nos meandros da heterodoxa decisão, a alegação que o poder público é lento em cumprir a lei, que já determina a presença de um profissional que zele por demandas específicas de alguns alunos, e também a preocupação de pais em darem aos filhos a atenção adequada, bem lavada, passada e engomada.

De fato, há volume de queixas em torno de crianças com deficiência sem a devida atenção no ambiente escolar, mas a solução caseira para a questão é matar o mensageiro, é uma afronta ao que se entende como educação pública, como educação inclusiva e como direitos da pessoa com deficiência.

Levar a casa para dentro da escola reduz a chance da construção de autonomia, seja ela como for, mesmo que na indicação, com o piscar dos olhos, de que o João quer ir ao banheiro. Desobriga e tira o sentido de envolvimento, da Maria, aluna sem deficiência, de ficar atenta às demandas de um colega com autismo e evoluir em suas percepções de vida. O cada um por si é um modelo fracassado e distante do mundo mais plural.

Esse ajudante caseiro, sem vínculo com a estrutura da escola, carrega em si "não me toques", receios de permitir o novo e de interagir com o novo e uma voz frequente dentro de sua cabeça: "preciso protegê-lo".

O decreto do governador Tarcísio tem poder de inflamar iniciativas que avaliam ser "necessário e muito melhor" encarcerar meninos e meninas com deficiência em locais "próprios para eles", onde serão zelados com muito carinho e nenhum contato com a re-a-li-da-de.

Tem poder de atrasar as demandas que pressionam os governos por melhores condições de inclusão dentro das escolas públicas, além de dar coragem às instituições particulares de acharem que tudo é responsabilidade da própria família.

Desde menino, escuto os outros falarem que sabem o que é o melhor para mim, mesmo eu não tendo um comprometimento intelectual e tendo desenvolvido uma ampla autonomia ao longo de minha vida em uma cadeira de rodas.

Isso demonstra que ver a pessoa com deficiência como um ser dependente é algo arraigado no coletivo e, fatalmente, dentro da maioria das famílias que, talvez, não consigam reparar que estão ocultando e anulando seus queridos. E isso não tem relação com o tipo de comprometimento e alcance de possibilidades.

É óbvio que existem condições humanas muito desafiadoras e que seja natural querer fazer o melhor para os que as carregam e apurar o olhar aos seus lamentos. Mas a batalha da diversidade é feita com transformações coletivas, não ao gosto do individual.

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