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Ciclocosmo - Caio Guatelli
Caio Guatelli

Muro de contenção pode prejudicar retorno da fauna no rio Pinheiros

Obra contrapõe esforço pela despoluição, diz biólogo; OUTRO LADO: Governo diz ter adotado medidas em favor da fauna e flora

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Historicamente desfigurado pela ocupação urbana, o rio Pinheiros vem sofrendo mais um processo de intervenção, desta vez para conter erosões. A obra, que vai cobrir as duas margens com dois longos muros, pode ser um revés no projeto bilionário de revitalização do entorno e despoluição das águas.

A nova paisagem petrificada começou a aparecer em 2021, quando pequenos trechos de muros foram erguidos nos pontos mais sensíveis. O avanço das obras seguia em ritmo lento, sem chamar a atenção da maioria dos paulistanos, que há décadas se acostumou a torcer o nariz e desviar o olhar do velho canal de esgoto enquanto passa apressada pelas avenidas marginais.

Operários trabalham na construção do muro de gabiões nas margens do rio Pinheiros - Eduardo Knapp/Folhapress

Mas as fortes chuvas de fevereiro fizeram o Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica), do governo estadual, acelerar o ritmo das intervenções. Em março, a movimentação de máquinas e operários obrigou a gestão estadual a interditar trechos dos dois parques que margeiam o rio.

Curiosamente, os mais afetados pelas interdições foram justamente aqueles que não se apressam nem torcem o nariz quando margeiam o Pinheiros —os frequentadores do Parque Linear Bruno Covas (margem oeste) e da ciclovia da marginal Pinheiros (margem leste).

Essas pessoas fazem parte da parcela de paulistanos que reaprenderam a admirar o rio, especialmente após os esforços de despoluição, que além de acabar com o mau-cheiro, já fazem reaparecer dezenas de espécies animais no leito e nas margens.

Para essa parte da população, a presença da fauna é tão marcante que a ciclovia da margem leste é carinhosamente chamada de "Ciclo Capivara".

"Além das capivaras, vivem no Pinheiros tartarugas, cágados, ratões-do-banhado, preás, teiús, cobras, lagartos, muitas aves e até peixes. Já contamos mais de 60 espécies animais", disse Mariana Aidar, presidente da ONG Projeto Capa. "O Capa foi criado em 2020 para cuidar das capivaras que se machucavam com o lixo jogado no rio. Com a despoluição, passamos a cuidar das outras espécies que começaram a aparecer", completou Mariana, que em sua equipe conta com 3 veterinárias, um biólogo e alguns auxiliares de campo para cuidar da fauna que vive ao longo dos 23,3 Km de leito e suas margens.

Família de capivaras se alimenta na margem leste do rio Pinheiros, que ainda tem solo natural; na margem oposta o muro de pedras prejudica o acesso de animais - foto: Projeto Capa

Avanço da muralha

Atualmente com 10 Km de muramento concluído, o governo de São Paulo prevê finalizar a obra até a metade do ano que vem, completando 46,6 Km de margens cobertas por muros de gabião (gaiola metálica preenchida com pedra britada).

Com o avanço do muro, a mudança na paisagem ficou mais evidente e chamou a atenção de quem frequenta os parques. O jornalista Willian Cruz, autor do canal "Vá de Bike" no Youtube, conta que teve a oportunidade de entrevistar um representante do governo do estado de São Paulo durante evento no qual foi apresentado a obra de contenção das margens.

"Fiquei bem preocupado com o discurso do representante da Emae [Empresa Metropolitana de Águas e Energia]. Ele mostrou as margens emparedadas e disse que a ideia é fazer isso em todo o rio. Aí eu perguntei como iam ficar as capivaras. Ele fez um malabarismo para tentar me convencer que tem capivara demais, que não podem ficar nesse rio, que são perigosas para as pessoas. Ele ignorou que ali é o habitat natural delas", disse Cruz.

O cicloativista Paulo Alves, que há tempos atua na região desses parques, lembrou que as margens do rio Pinheiros sofrem há décadas com a expansão urbana, especialmente com a invasão da mata ciliar pelas pistas de automóveis. "É preciso mitigar o problema que nós mesmos humanos criamos e ter uma menor interferência possível junto aos animais", comentou.

Opiniões de especialistas

Para entender os impactos dessa obra, a Folha consultou um biólogo e um geólogo, ambos especializados no tema.

Para o geólogo Sasha Hart, doutor em Hidrogeologia pela USP (Universidade de São Paulo), "a instalação dos gabiões é uma boa opção para ajudar a lidar com a instabilidade e a erosão das margens do Pinheiros", mas ele lembra que isso não seria um problema se o crescimento da cidade tivesse respeitado as vastas áreas marginais, necessárias para seu alagamento em períodos de cheia. "O conflito surgiu quando houve a canalização do rio e as contínuas construções nas margens", disse Hart.

O geólogo ainda indica que, diferente da técnica de concretagem usada no rio Tietê, o uso de gabiões no Pinheiros oferece vantagens, como suas propriedades de deformação e de alta permeabilidade, o que torna a estrutura mais adequada para resistir a intensas enchentes.

Outra vantagem, segundo Hart, é que "por formar um muro, os gabiões podem maximizar o uso do espaço horizontal, permitindo o plantio de novas árvores, instalação de ciclovias e áreas de lazer". Contudo, ele alerta que os gabiões podem impactar espécies que antes eram adaptadas ao terreno natural, tanto vegetais como animais.

Peixes fotografados recentemente nas águas do rio Pinheiros, próximo ao bairro Vila Olímpia - Projeto Capa

Para o biólogo Djair Sergio de Freitas Junior, mestre em Ecologia e Conservação da Biodiversidade pela UFMT (federal do Mato Grosso) e doutor em Ciências Ambientais pela Unemat (estadual do Mato Grosso) combinado com a Universidade da Florida (Estados Unidos), os muros que estão sendo construídos pelo governo paulista não contribuem para a reabilitação da fauna e da flora.

"Uma obra composta prioritariamente por materiais inorgânicos e não alinhados ao ambiente natural não me parece ser uma solução inteligente, muito menos efetiva", disse Freitas Junior. Ele acredita que o desafio encontrado no rio Pinheiros "precisa ser enfrentado com ciência e consciência para não correr o risco de, no futuro, ter de despender mais verbas públicas para uma correção de rumo".

O biólogo diz que a despoluição das águas é tão importante quanto a preservação do aspecto natural das margens. "deve-se pensar além, para garantir um modelo que consiga, a médio e longo prazos, restaurar a interação e a experiência que pedestres, esportistas, nativos e turistas já vivenciaram ao longo daquelas margens, pois além de um ícone da capital paulista, ele contribui com práticas que trazem mais saúde àqueles que hoje caminham, correm ou pedalam em seu entorno".

No caso de intervenções que modifiquem o aspecto natural das margens, Freitas Junior sugere o modelo de "corredor ecológico", utilizado para conectar partes do habitat interrompidas por interferências urbanas. "Para que a medida seja efetiva, o piso nativo, natural, deve ser preservado. O plantio de espécies nativas, como as palmeiras do tipo Jerivá, que já povoaram esse habitat, pode auxiliar na regeneração da biota, bem como na sustentação das margens do rio, evitando assim a erosão", disse.

Ao ver uma foto dos muros de gabiões e a estrutura em forma de rampa, que, segundo o governo paulista, servirá como acesso de mamíferos à água, o biólogo deu uma risada e se espantou: "Meu Deus!"

O muro de gabiões e uma das rampas de acesso construídas para a "mobilidade" da fauna local - foto: Projeto Capa

Tanto Freitas Junior quanto Hart acreditam que um dos principais pontos para uma obra dessa envergadura é o debate entre governo e sociedade.

"Cabe aos paulistanos a reflexão consciente sobre o futuro do rio Pinheiros", disse o biólogo.

"É necessário dialogar sobre o que está acontecendo com a sociedade", disse o geólogo.

Outro lado

Por nota, a Semil (Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística), do governo estadual, diz que "a manutenção do rio Pinheiros é fundamental para complementar as ações de saneamento", e que "as obras nas margens do rio Pinheiros visam reverter os processos erosivos, melhorar o escoamento do canal e levar mais segurança aos usuários dos parques"

A nota diz ainda que o foi feita uma "análise técnica junto às entidades de proteção animal", quando foi constatado que os muros de gabiões seriam a solução mais adequada para resolver as erosões.

Quanto aos cuidados com a fauna e flora da região do Pinheiros, a Semil disse que "a adoção de rampas de acesso espaçadas a intervalos regulares, compatíveis com as características dos grupos existentes, irá permitir no local a mobilidade, por exemplo de mamíferos como capivaras", e salientou que "o projeto prevê ainda o plantio de árvores e vegetação nativa ao longo de todo o trecho".

Patos que vivem no rio Pinheiros - Projeto Capa

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