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Ciclocosmo - Caio Guatelli
Caio Guatelli

Vale do Jequitinhonha vira 'Lithium Valley' e acende debate sobre a exploração de lítio

Região, que já foi conhecida como vale da miséria, atrai investimentos bilionários em busca de minerais essenciais para veículos elétricos

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Nova York

A população do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, que por décadas conviveu com alguns dos piores cenários de pobreza e fome do Brasil, está, finalmente, perto da redenção. O interesse mundial pela região e suas vultosas reservas de lítio, metal essencial para a produção de veículos elétricos, está transformando o velho "vale da miséria" no novo eldorado brasileiro.

O início das operações de grandes mineradoras já começou a modificar a paisagem de algumas cidades, levando um misto de esperança e ansiedade para populações que até hoje sofrem com desemprego, carência de leitos hospitalares, baixa qualidade na alfabetização e falta de saneamento básico.

Os dramas do Vale do Jequitinhonha já foram noticiados pela Folha em diversas ocasiões, como na edição do caderno especial "Fome", de 1993, que trazia a história de Laura Rita, moradora de Araçuaí que deu um de seus filhos em troca de comida para alimentar os outros quatro. Ou quando o presidente Lula, no lançamento do programa Fome Zero em 2003, fez um discurso na margem do rio Jequitinhonha: "esta região não pode continuar a ser vista como o vale da miséria". Em 2018, título de matéria chamou o metal de "petróleo do futuro".

Hoje, com a intensa operação de duas mineradoras e os trabalhos de prospecção de dezenas outras, a preocupação se volta ao desafio em equilibrar exploração, arrecadação e manutenção do meio ambiente e da cultura regional.

Para o doutor em geologia econômica Edson Farias Mello, que foi diretor do Departamento de Desenvolvimento Sustentável na Mineração do MME (Ministério de Minas e Energia) entre 2010 e 2016, uma das etapas mais importantes do processo minerário é a escuta da população afetada. "O desafio é fazer com que a assimetria de diálogo entre a empresa, a prefeitura e a comunidade seja diminuída", disse.

Em Itinga, município com 13.700 habitantes, a população ainda amarga uma das piores rendas anuais do país, R$ 8.393,59, segundo dados do IBGE de 2020, mesmo com o funcionamento de dois empreendimentos bilionários.

Na análise do prefeito João Bosco (PP), a primeira venda da mineradora Sigma Lithium, feita em maio, ainda não salvou o caixa da cidade, mas já gerou 475 novos empregos diretos e está movimentando a rede de hotéis e o comércio. Na arrecadação, o ISS teve um salto de mil por cento, chegando a quase R$ 10 milhões.

"Essa nova receita [de ISS] é completamente ínfima perto do que está por vir", disse o prefeito ao se referir à arrecadação de CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral) que deve entrar no cofre de Itinga nos próximos dias.

Ana Cabral-Gardner, CEO da Sigma, apontou para uma produção de 18 mil toneladas de LCE (carbonato de lítio equivalente) ainda este ano. Para 2024, Gardner espera chegar a 37 mil toneladas do produto, o que levará a empresa a faturar US$ 1,5 bilhão (R$ 7,5 bilhões) em valores atuais.

Acompanhada do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), Gardner lançou a Sigma na Nasdaq (bolsa americana de tecnologia) em 9 de maio, na cidade de Nova York. No informe aos investidores, a bolsa rebatizou a região como "Lithium Valley" (Vale do Lítio) e expôs números ainda mais ambiciosos: "para as fases 2 e 3 são esperadas 104,2 mil toneladas anuais de LCE", o que representa US$ 4,3 bilhões (R$ 21,5 bilhões) hoje.

Para os municípios onde a empresa está instalada, as vizinhas Itinga e Araçuaí, essa projeção equivale a R$ 258 milhões arrecadados apenas com a compensação financeira. Há ainda a arrecadação de ISS e ICMS a ser gerada pela própria Sigma e pelas empresas que compõe a cadeia logística da mineradora.

Empolgado com a nova realidade, o prefeito de Itinga lembra que o Vale do Jequitinhonha conta também com a CBL (Companhia Brasileira de Lítio), que opera uma jazida desde 1992, e ainda espera pelas operações da holandesa AMG, da canadense Ionic e da americana Atlas, todas já realizando prospecção na região.

Foto de 18 de abril de 2023 mostra a cava Grota do Cirilo, onde a mineradora Sigma Lithium explora minério de lítio, em Itinga, no Vale do Jequitinhonha (MG) - REUTERS

Com a intenção de debater os rumos das políticas públicas em relação ao lítio, a Câmara dos Deputados reuniu pela primeira vez, em 10 de maio, representantes da indústria automobilística, mineração de lítio e de baterias com deputados federais e técnicos do MME. Na ocasião pouco se falou sobre políticas de proteção ao meio ambiente e quase nada se ouviu sobre cuidados com as populações afetadas no Vale do Jequitinhonha. Na maior parte do tempo se discutiu a capacidade de participação do país na oportunidade econômica guiada pelo mercado chinês de produção de baterias.

A transformação na região, contudo, tem sido questionada por comunidades e movimentos sociais afetados pelas mineradoras. Em 5 de abril, um ofício assinado pelo MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e pela deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT) foi encaminhado ao MP-MG (Ministério Público de Minas Gerais) com uma denúncia de violação de direitos humanos.

O documento questiona o plano de prospecção da Sigma na APA (Área de Preservação Ambiental) Chapada do Lagoão, e pede a anulação da autorização concedida à empresa, observando que o território é considerado "a caixa d’água do município de Araçuaí", com mais de 139 nascentes e lar de 300 famílias quilombolas. A denúncia aponta que as famílias "não foram consultadas de forma livre, prévia e informada", como prevê a lei, e indica os riscos culturais e ambientais da interferência no meio.

Aline Gomes Ruas, da coordenação nacional do MAB, observou que a falta de consulta não se limita ao território da APA e aos quilombos. Ela diz que a empresa não garantiu a participação dos moradores da comunidade Poço Dantas, vizinha de jazida da Sigma em Itinga. "Fizeram lives para debater o lítio, mas o povo não tem acesso a telefone nas comunidades", disse Ruas, que reclama também do tipo de linguagem trabalhada presencialmente: "você ouve lá um juridiquês de impactos ambientais, mas estamos numa região que não há um investimento na alfabetização".

Manifestantes carregam latas de água e cartazes
Quilombolas e outros moradores do Vale do Jequitinhonha protestam contra a atuação de mineradoras de lítio durante o Fama (Fórum Alternativo Mundial da Água), em Brasília, no ano de 2018 - Guilherme Cavalli

Gomes Ruas observou que moradores de Poço Dantas estão adoecendo com o excesso de "pó de pedra" e com o barulho da mineração que atravessa a madrugada. Ela diz ainda que a atividade da mineradora causa rachadura nas casas e que a poeira levantada pela mina poluí plantações e a água do rio Jequitinhonha.

Em 3 de maio, poucos dias antes da Sigma se lançar na Nasdaq, o MP-MG considerou ilegal a autorização de prospecção dada à mineradora e recomendou a sua anulação.

A Sigma diz que acatou, e não iniciou a etapa de pesquisa. "isso é fakenews. É só você ir lá que você vai ver que a gente não está prospectando em APA nenhuma", disse Ana Cabral-Gardner. "A única coisa que tem da Sigma lá, é que nós pedimos uma autorização para ir lá olhar, ou seja, a gente cumpriu a lei", completou.

Ela ainda rebateu as acusações feitas pelo MAB e destacou que a Sigma tem uma grande preocupação ambiental e social. Deu como exemplo o empilhamento de rejeito, que é feito à seco e não contém químicos nocivos ao meio ambiente e destacou a preservação do curso do riacho Piauí, localizado sobre uma formação de rica em lítio. Sobre o barulho, Gardner disse que o nível de ruído não é considerado poluição sonora, mas mesmo assim convida os incomodados a debater soluções individualmente. Quanto à poluição do ar, ela diz que a poeira não é da mina: "sim, tem poeira de tráfego de caminhão de mina na estrada municipal", e acrescenta que está cobrindo a via com cascalho. "Estou usando água de esgoto. A água do [rio] Jequitinhonha é esgoto a céu aberto", concluiu ao comentar a poluição da água.

No aspecto social, a CEO contou que criou 10 mil linhas de microcrédito privado para auxiliar as mulheres da região, construiu 2 mil cisternas na zona rural e doou 2,4 milhões de cestas básicas durante a pandemia.

Farias Mello, que atualmente é diretor do Instituto de Geociências da UFRJ, comenta que "é preciso separar muito bem o que é uma ação responsável de uma ação altruísta". Para ele, a responsabilidade das mineradoras deve ser avaliada através da qualidade de seu Plano de Fechamento de Mina, um mecanismo de proteção social e ambiental exigido das mineradoras por lei, mas que, segundo o geólogo, é pouco valorizado pela ANM (Agência Nacional de Mineração).

O geólogo pontuou que a participação das populações na construção do Plano de Fechamento é essencial para evitar problemas quando o minério esgotar. Ele lembrou dos desastres causados pela Vale nos municípios mineiros de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), que juntos somam 295 mortes, e do caso da Vale em Águas Claras (MG), um exemplo de colapso econômico após o fechamento da mina.

Quando perguntada sobre seu Plano de Fechamento de Mina, a CEO disse que acredita na capacidade dos agentes públicos em gerir a CFEM. "Eu consultei a comunidade? Não. Eu simplesmente, sem consulta, falei o seguinte: está aqui ó, um balde de dinheiro para você", disse Gardner.

Pelas suas contas, ao longo dos 13 anos de expectativa de funcionamento de suas minas, a empresa deve gerar US$ 500 milhões (R$ 2,5 bilhões) de compensação financeira à região.

Na gestão municipal, o prefeito João Bosco está desenvolvendo junto aos vereadores um projeto de lei para reservar 5% da CFEM para as gerações futuras. "Só vai poder mexer em caso de guerra", comentou.

Homem em pé em frente a paisagem de montanha
Pierry Menezes, presidente da Associação dos Moradores de Itinga, no leito seco do rio Jequitinhonha - Arquivo Pessoal

Pierry Menezes, presidente da Associação dos Moradores de Itinga, nasceu no município. Hoje com 38 anos, diz que já viu o Vale passar por muitas tristezas, e atualmente o que mais o preocupa são as drogas e o desemprego. Para ele, a chegada das mineradoras representa uma salvação. "Nossa esperança é que essas empresas movimentem a economia e façam o Vale sair da pobreza".

Questionado sobre compensações sociais e ambientais ao chamado "Projeto Vale do Lítio", o governo de Minas Gerais disse, por nota, que "tem o objetivo primordial de promover o desenvolvimento econômico do estado, bem como o social" e enumerou esforços para aumentar a cadeia produtiva do lítio. A nota também citou o programa "Trilhas de Futuro", de qualificação da mão de obra local.

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