Ciclocosmo

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Ciclocosmo - Caio Guatelli
Caio Guatelli
Descrição de chapéu violência

A rotina de medo de quem pedala na cidade de São Paulo

Violência contra ciclistas dispara; governo e prefeitura dizem trabalhar por melhores condições

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São Paulo

Na manhã de sexta-feira (6), recebi pelo Whatsapp mais um vídeo de ciclista ferido após ser espancado por assaltantes na cidade de São Paulo.

O crime aconteceu na noite anterior, sobre a ciclopassarela que faz a ligação da ciclovia do rio Pinheiros com o Parque do Povo, na zona oeste da capital paulista. Na estrutura não há vigilância permanente, e os dois criminosos conseguiram fugir sem deixar rastros.

Ciclistas usam a escadaria que liga a ponte do Socorro ao trecho sul da ciclovia do rio Pinheiros. Relatos de assalto são frequentes no local - CAIO GUATELLI

Nas imagens, a vítima aparece caída, gemendo de dor, enquanto pessoas a sua volta demonstram indignação com a escalada de violência contra ciclistas. "Quebraram a perna do rapaz. Todo ano a mesma p**** e ninguém faz nada! A gente joga o voto lixo. Não tem policiamento", diz um dos passantes. Ainda segundo a pessoa que narra as imagens, foram roubados a bicicleta e o celular.

O vídeo é quase uma repetição de outro, que recebi a menos de um mês. Naquele, o treinador de ciclismo Cleiton Ferreira dos Santos relata a situação de desespero que passou ao encontrar a gerente de projetos Raquel Reis Rodrigues caída no acesso à ciclovia do Parque Linear Bruno Covas (zona sul da capital), na manhã do dia 15 de agosto.

Raquel tinha acabado de ser espancada por dois assaltantes que levaram sua bicicleta e seu celular, e precisou ser hospitalizada com fraturas na face e diversas escoriações pelo corpo. No vídeo, o treinador implora por mais policiamento na região. "As autoridades precisam tomar uma atitude", disse naquele dia. No local onde Raquel foi agredida também não há sistema de vigilância permanente.

A gerente de projetos Raquel Reis Rodrigues sofreu fratura na face após ser espancada em assalto na ciclovia do Parque Linear Bruno Covas

Nos encontros de ciclistas, os assuntos que mais tenho ouvido são sobre a insegurança tomando conta da cidade. Relatos de roubos de bicicletas e de pessoas desistindo de pedalar por trauma ou medo se repetem diariamente, em diversas regiões.

Entre tantas reclamações, um grupo de ciclistas que usa a ciclovia do Parque Ecológico do Tietê (zona leste) tomou uma atitude inusitada para frear a escalada de assaltos. Há cerca de três meses criaram uma vaquinha para bancar a vigilância particular da área, que é pública. Já tinham desistido de pedir ajuda às autoridades…

No portal da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado de São Paulo, o problema está documentado. Dados oficiais indicam que o número de roubos de bicicletas disparou na cidade de São Paulo. De janeiro a julho, o crescimento foi de 26,6% em relação ao mesmo período do ano passado.

Em números totais, os crimes classificados como "roubo - (art. 157)", para os objetos "bicicleta e bicicleta elétrica", subiram de 294 em 2023 para 372 este ano, só na capital.

Além dos roubos, o trânsito da cidade de São Paulo ficou mais violento. Segundo dados do Infosiga, sistema de monitoramento da letalidade no trânsito do governo estadual, 28 ciclistas morreram em acidentes nas ruas da capital até julho, um aumento de 32,5% em relação ao mesmo período do ano passado.

Em busca de um panorama atual da rotina dos ciclistas paulistanos, decidi pedalar por um percurso de 50 km entre a rua da Consolação, no centro, e a periferia da zona sul, passando por caminhos utilizados por ciclistas recreativos, atletas profissionais, entregadores, e trabalhadores que usam a bicicleta para deslocamentos do dia a dia.

Logo no começo, na ciclofaixa da rua da Consolação, o espaço das bicicletas parece ter sido transformado num bolsão de estacionamento da Uber. Às 9h30, flagrei ao menos três motoristas bloqueando completamente a faixa vermelha —infração grave, segundo o artigo 182 do CTB (Código de Trânsito Brasileiro). Cicloentregadores me disseram que durante a semana a prática é ainda mais frequente.

Carro de aplicativo de transporte e viatura da PM estacionam sobre a ciclofaixa da rua da Consolação na manhã de 7 de setembro - CAIO GUATELLI

Da Paulista até Moema, cruzando o Paraíso, foi tudo tranquilo por ciclofaixas e ciclovias. Mas, passando por ali, não pude deixar de lembrar do susto que tomei na véspera, quando uma viatura da PM subiu o canteiro central a centímetros de minha bicicleta, estavam perseguindo um suspeito de roubar celulares.

Os problemas graves começaram mais adiante, na avenida Washington Luís, que não tem proteção alguma para ciclistas, e onde alguns motoristas gritaram e buzinaram para eu desistir de pedalar na pista (como se fossem os donos do pedaço) —segundo o CTB, quando não há ciclovia ou ciclofaixa, bicicletas podem trafegar nos bordos da pista, e os carros devem respeitar a distância de um metro e meio para o ciclista.

Ainda na Washington Luís, tive a sensação de estar sendo perseguido por ladrões em uma motocicleta. Rapidamente mudei de pista e acessei o túnel que leva ao aeroporto de Congonhas, onde há segurança. Com o coração na boca, esperei alguns minutos para continuar. Dali em diante, segui medroso sentido zona sul. Todo barulho de motocicleta me deixava assustado…

Depois de tomar incontáveis finas, cheguei na entrada sul da ciclovia do rio Pinheiros, na avenida Miguel Yunes. Por ser completamente segregado das avenidas, o local tem (quase) tudo para servir de oásis aos ciclistas.

Numa sombra, tomando água de coco, estava o aposentado Vito Antônio Moretto, 75, antigo frequentador da estrutura. "Gosto muito daqui, venho quase todos os dias. O que estraga é essa interdição do trilho [obras do monotrilho do Metrô, que já duram 10 anos], e os assaltos". Vito conta que no ano passado foi seguido da entrada da ciclovia até sua casa por um homem que roubou duas bicicletas de sua garagem, no bairro Cidade Dutra. "Também precisa melhorar o asfalto e por iluminação, para ficar igual à parte rica, lá da Vila Olímpia", completou, ao se referir ao trecho norte da ciclovia, que fica a 20 km dali, após as obras do Metrô.

Na área do estacionamento encontrei Sergio Pereira, 60, que há 4 anos vende sucos e lanches numa barraca de lona equipada com geladeira e diversas mesas. Ele conversava com Rodrigo Chavez, 33, morador do Capão Redondo. Rodrigo estava perguntando sobre a segurança da ciclovia. "Está perigoso. Ontem mesmo roubaram a bike e o celular de um rapaz logo ali", disse o vendedor, que reclamou também dos 3 acessos que foram fechados há mais de um ano. "Essas coisas fizeram o movimento cair 70%", completou.

Ao acessar a ciclovia, o cenário descrito pelo senhor Vito se confirma. O piso está esburacado, a pintura está desbotada e não há postes de iluminação. O caminho é interrompido 8 km adiante, onde uma série de obras do Metrô obrigam o ciclista a dar meia volta. A única opção é acessar o Parque Linear Bruno Covas pela ponte do Socorro, através de uma indecente escadaria de aço (escada e bicicleta não combinam). No meio do desvio, um ciclista me alerta: "melhor não ir para lá. Ali [na outra margem] é onde mais tem assalto". Decido então voltar ao centro pela Marginal Pinheiros, uma das avenidas mais movimentadas da cidade.

Enquanto tento me concentrar na tarefa de não ser atropelado, um ciclista todo equipado emparelha à esquerda. Rapidamente o contei sobre minha reportagem e pedi para fazer a entrevista. Logo percebi que ele não podia parar, estava num ritmo frenético de treino.

A 40 km/h e respiração ofegante, o funcionário público Renato Otto, 53, deu seu relato. Eu, ainda mais ofegante, e com as mãos grudadas no guidão, tentei guardar o que pude na cabeça, já muito ocupada em me manter vivo naquela avenida. Pelo que consigo lembrar, Renato ia da sua casa, em Moema, até o aeroporto de Guarulhos, passando pelo Parque Ecológico do Tietê e outros trechos perigosos. "Ida e volta vai dar 150 km", disse. Perguntei se ele não tinha medo. Olhando para os carros, que passavam triscando, Renato respondeu: "Tenho sim. O maior dos perigos é a falta de civilidade dos motoristas".

O funcionário público Renato Otto, 53, durante seu treino na Marginal Pinheiros: "O pior é a falta de educação dos motoristas" - CAIO GUATELLI

Leia na íntegra a nota da Prefeitura de São Paulo:

A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito (SMT), ampliou nos últimos anos os recursos e ações voltadas ao fortalecimento da segurança no trânsito da cidade. Desde 2021, foram mais de R$ 185 milhões aplicados em atividades exclusivamente de educação no trânsito, sendo R$ 54 milhões somente em 2023, um crescimento de mais 30% em relação a 2022. Também é feita fiscalização por meio de rondas periódicas em viaturas para coibir possíveis irregularidades e desrespeito às leis de trânsito. A capital tem a maior malha cicloviária do país, com 743 km de extensão, e a Prefeitura vem trabalhando para ampliar e integrar a rede, ofertando um espaço adequado aos ciclistas, tornando os deslocamentos mais seguros.


E a nota da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado de São Paulo:

A SSP atua continuamente no desenvolvimento de estratégias para enfrentar todas as modalidades de crimes em São Paulo, incluindo os roubos e furtos de bicicletas. O empenho das polícias Civil e Militar possibilitou uma redução de 12,1% e 3,4% nos roubos e furtos em geral, respectivamente, nos sete meses deste ano comparado ao mesmo período de 2023 na cidade. Os roubos de veículos, incluindo os de bicicletas, também caíram em 17,3% no período analisado. Somado a isso, 25.547 infratores foram presos e apreendidos. Diversas ações são realizadas para coibir não somente os roubos e furtos de bicicletas, mas também os crimes cometidos com o uso desses veículos, como a operação Speed Bike. De janeiro até o último dia 01 de setembro, a ação resultou na apreensão de 112 bicicletas. A Polícia Civil registrou uma ocorrência de roubo a ciclista na noite do dia 5 de setembro, na Praça Nicolau David, no Jardim Paulistano, na zona oeste de São Paulo. Um homem, de 36 anos, contou que dois suspeitos armados abordaram ele e outra vítima e roubaram o seu celular. A ocorrência foi registrada na Delegacia Eletrônica e encaminhada ao 15º Distrito Policial, responsável pelo endereço dos fatos. O policiamento foi intensificado na região e diligências são realizadas visando à identificação e prisão dos autores.


Procurado para comentar as reclamações sobre a ciclovia do rio Pinheiros, Michel Farah, CEO da Farah Service, empresa que administra a estrutura, disse que no trecho sul da ciclovia foram investidos mais recursos do que no trecho norte, considerado mais "rico" pelos usuários. "Paisagisticamente, este trecho é mais natural, tranquilo, tem mais vida animal", comentou. O empresário ainda esclareceu que o local está equipado com estacionamento, banheiros e pontos de apoio.

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