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É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor
Descrição de chapéu

Como sobreviver ao Caminho de Santiago

Com alguns cuidados, o mais famoso destino de peregrinação está ao alcance de todos

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Recebi cartas e mensagens pedindo dicas para quem quer se aventurar pelo milenar Caminho de Santiago, na Espanha. Se adotado o trecho mais famoso, o Caminho Francês (há pelo menos mais nove opções, mas a teoria varia pouco), são cerca de 800 quilômetros de Saint-Jean-Pied-de-Port, cidade francesa nos montes Pirineus, até Santiago de Compostela, capital da Galícia, na Espanha. Por tratar-se de um roteiro feito quase todo por trilhas de terra, exige alguns cuidados, além do fôlego. Nada, porém, que não se resolva com boa vontade, pois não é nem de longe um percurso que exija grandes habilidades. E, por ser uma alternativa de turismo que atrai centenas de milhares de mochileiros de todo o mundo anualmente, as pequenas cidades atravessadas sempre oferecerão opções de pouso e refresco a cada poucos quilômetros.

Bosque de Roncesvalles, primeira cidade espanhola do Caminho de Santiago - Eduardo Knapp - 1.out.15/Folhapress

O Caminho de Santiago virou rota de peregrinação no século 9, quando um camponês descobriu, por acidente, o túmulo que seria do apóstolo São Tiago, um dos doze discípulos de Jesus, que teria ido até Finisterra, literalmente o "fim do mundo" na época, ponto extremo ocidental da Espanha. Chegando lá, teria sido mandado por uma aparição da Virgem Maria de volta a Jerusalém, onde terminaria martirizado pelos romanos. Outros historiadores garantem que o caminho já era rota de rituais pagãos, e que sua santificação seria mais uma apropriação sincrética.

Seja qual for a história correta, fato é que foi o catolicismo que consolidou o percurso, dando-lhe status de peregrinação e, inclusive, com o bônus de oferecer a compostela, ou certificado, perdoando os pecados a todo fiel que comprovar ter percorrido no mínimo 100 quilômetros a pé, 200 a cavalo ou, na versão mais moderna, de bicicleta. Para ter direito ao diploma milagroso que pavimenta sua ida ao Paraíso, basta o caminhante emitir o "passaporte do peregrino" em algum estabelecimento certificado no início da jornada, e ir carimbando-o em pousadas, igrejas, albergues e restaurantes até chegar a Santiago. Lá, o Gabinete de Atendimento ao Peregrino da Catedral confere a rota percorrida por meio dos carimbos e, aí sim, entrega a merecida indulgência. Tem seu charme até para os menos chegados à religião, convenhamos.

Mas antes de chegar lá o caminhante vai enfrentar boa dose de perrengues. Afinal, não se chega ao Paraíso passeando no shopping, certo? Então, nunca é demais observar alguns cuidados básicos.

Preparo físico - Percorrer de 20 a 30 quilômetros por dia pede um preparo que deve incluir treino de longos percursos com a própria mochila que vai ser usada, de preferência carregada com o peso que levará no trajeto. E é bom já usar as botas (de cano alto, para prevenir torções) que serão usadas na viagem, amaciando-as e adequando-as a seu passo.

Bagagem - A regra de ouro para longas caminhadas que não incluem acampamento (proibido ao longo do Caminho), é levar o mínimo de peso possível, poupando o corpo do que não é necessário. Se o caminhante for na época mais quente do ano, uma calça de trilha, um short ou bermuda, duas camisetas, dois pares de meias, duas mudas de roupa de baixo (de preferência de material sintético), um chinelo e um agasalho corta-vento (e chuva) são suficientes, pois podem ser lavadas a cada noite e têm secagem rápida. Se a opção for por uma época mais fria, a calça pode ser forrada e incluir duas ceroulas e camisetas térmicas,, além de um bom casaco. Buffies, peças que protegem boca, garganta e ouvidos, são aconselháveis em qualquer temperatura, pois a caminhada costuma começar antes do amanhecer, quando sempre o ar está mais frio.

Tralhas variadas - Além das roupas, a mochila deve incluir um kit de medicamentos básicos (consulte seu médico, mas no mínimo deve incluir algum tipo de analgésico, antidiarreico e antialérgico), material para pequenos curativos e, fundamentais, adesivos específicos para as bolhas que, por mais cuidadoso que o caminhante seja, acabarão aparecendo em algum ponto dos pés. Muitos aconselham furar a bolha com agulha esterilizada, passar fio e que tais, mas a verdade é que, em um ambiente que vai jogar poeira o tempo todo sobre o local ferido, a solução mais segura será o curativo que não sai na água e fica no lugar até a pele se recuperar. Hashtag, fica a dica.

A bagagem deve incluir, além do material de higiene básico (sabonete, de preferência líquido, xampu, hidratante, pasta e escova de dentes e fio dental), protetor solar, se possível com repelente de insetos. Alguns peregrinos (eu, por exemplo) usam xampu neutro também como sabonete, tirando alguns gramas do peso final. Quando o mundo vai às costas, menos sempre será mais.

Hora do descanso - Se o caminhante for pernoitar só em albergues, muitos gratuitos (mas aos quais sempre se deve dar uma doação "voluntária" de 10 a 15 euros), um saco de dormir pode ser boa ideia, já que a alta rotatividade não combina com a melhor higiene e são frequentes histórias de terror envolvendo pulgas, percevejos e outros seres indesejáveis (Sim, pode se coçar a esta altura da leitura). Mas, se a viagem não for individual, há opções de alojamento cujo custo, dividido por duas ou mais pessoas, pode ser pouco mais alto que a soma da doação a um lugar com menos conforto. Comparar preços pode evitar, além de mais um trambolho na mochila, uma noite mal dormida com roncos de estranhos que nem o melhor protetor de ouvido consegue abafar.

Bastões - O uso de bastões de caminhada tem defensores apaixonados (eu, por exemplo) e críticos que os consideram inúteis. Se eu fosse você, daria chance ao equipamento, que tem custo razoavelmente baixo e permite distribuir o peso por quatro pontos de apoio em vez de apenas dois, ou seja, suas pernas. Permite também sondar se aquele ponto em que se pretende pisar tem firmeza suficiente antes de resultar em uma pedra solta e um belo tombo. Para seres desastrados (eu, por exemplo), não é pouca porcaria.

Pochete - Esperneiem à vontade os fashionistas, mas para levar celular, documentos, valores, óculos e uma lanterninha de cabeça para o início da caminhada antes do amanhecer, é a melhor solução. Bolsos das roupas, se carregados com essas coisas, podem gerar perdas, atritos incômodos ou mesmo quebras em caso de tombos. Então, ignore a moda e escolha o modelo mais adequado ao que pretende levar à mão.

Água e alimentos - No Caminho de Santiago, de alta frequência turística, há algum tipo de estabelecimento a cada poucos quilômetros, em praticamente todos os trajetos. Assim, levar no máximo um litro de água costuma ser suficiente, pois o reabastecimento é garantido. Pelo mesmo motivo, não há necessidade de carregar alimentos, no máximo uma balinha para adoçar a boca ou umas castanhas para repor o sal perdido. Aqui, um alerta: apesar de quase todos os caminhantes optarem por sair de madrugada para ganhar o máximo de terreno antes do calor ficar forte demais (principalmente no verão, quando o sol só nasce na Espanha depois das 7h), a maioria dos alojamentos só serve o café da manhã depois das 8h. O jeito é comprar na véspera alguma fruta, iogurte etc para começar a jornada sem precisar ouvir a barriga roncar de fome.

De resto, nunca é demais lembrar que, por mais e melhores dicas que possa dar quem já fez o Caminho, ou parte dele (eu, por exemplo: só fiz 450 quilômetros, ainda estou devendo os demais, mas garanti minha compostela, ahá!), trata-se de uma empreitada pessoal e que nunca será a mesma, nem para quem está em um grupo. O ritmo será o de cada um, o olhar é intransferível e a experiência, simplesmente fantástica. E se em algum momento você se perguntar o que é que está mesmo fazendo ali, a sensação de realização a cada trecho percorrido dará a resposta necessária: porque o Caminho está aqui e eu também. Então, como diz o cumprimento tradicional entre os que se cruzam pelas sendas espanholas, "Buen camino!".

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