Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

O vazio do futuro o envenenava - Ensaio Palavra-Imagem

com Diogo Bercito e Gui Mohallem

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Série Herança do artista Gui Mohallem, exclusivo entretempos
Série Herança do artista Gui Mohallem, exclusivo entretempos - Gui Mohallem

Para este Ensaio, convidei meu amigo Diogo Bercito para expôr um trecho de "Vou Sumir Quando a Vela se Apagar", seu primeiro romance publicado. Ele escreveu para tentar inventar a história de seu bisavô sírio, que desapareceu e não deixou traços. Acabou descobrindo coisas de si próprio. É uma história sobre a solidão de Yacub e sobre sua vontade de estar junto de Butrus, o amigo com quem cresceu num vilarejo perto de Damasco. É também a história de uma viagem a São Paulo motivada por uma tragédia. Ele quis recriar a cidade cosmopolita dos anos 1930, onde migrantes se entrelaçavam nas ruas, nos mercados e nos cortiços e também quis colocar fogo em tudo, acender as velas e projetar sombras nas paredes do romance––até desaparecer. Mestre em estudos árabes pela Universidade Autônoma de Madri e pela Universidade Georgetown, onde cursa um doutorado em história, trabalha para a Folha desde 2007 e já esteve comigo em uma aventura inesquecível na Armênia em 2015, cobrindo o centenário do Genocídio Armênio cometido pelos turcos para a Ilustríssima. Para acompanhar suas palavras, convidei o artista Gui Mohallem para publicar sua inédita série "Herança". Objetos em parafina pigmentada, em que são encapsuladas imagens da família libanesa do artista. O conjunto apresentado nesta matéria foi comissionado para Exposição Don't Ask Me Where I'm From, produzida pelo museu canadense Aga Khan em parceria com a Fundação Imago Mundi, da Itália. A combinação entre eles? Parece feita sob medida.

Série Herança do artista Gui Mohallem, exclusivo entretempos
Série Herança do artista Gui Mohallem, exclusivo entretempos - Gui Mohallem

Páginas 15-18:

***

Afastaram-se um pouco adiante, onde o caminho de terra se dividia em duas línguas. Olharam um para o outro, sorriram de tristeza e tomaram cada qual uma estrada. Yacub seguiu devagar, chutando o chão com o pé descalço, interrompendo o silêncio da noite com um som áspero.

À direita, via a casa da família de seu Ismail. Vazia. Um pouco mais adiante, a de Hakim, o antigo mukhtar. Vazia. À esquerda, morava o clã do tio Fuad. Vazia. Atrás do morro, a do tio Mikhail. As casas de pedra eram agora o lar de um vento quente e aprisionado. De um cheiro de terra apodrecida. Um mato escuro cobria as despensas subterrâneas, sufocando o espaço onde antes guardavam os grãos colhidos com suor. A visão doía em Yacub. Não tinha sobrado quase ninguém no povoado. Como o tio Mikhail havia dito na carta — estavam todos no Brasil.

Yacub estava quase acostumado àquela solidão, ao vazio ladeando os caminhos, mas ainda se enfurecia com quem tinha deixado o vilarejo para trás. Ouvia os pais, que se ressentiam de quem havia partido, e as notícias dos que enriqueciam no Brasil agravavam essa mágoa. Nos últimos anos, menos gente tinha ido embora. Parecia que a levedura da migração tinha parado de fermentar. Yacub pensava que ia se casar ali e Butrus também. Uma ideia desconfortável, mas ao menos já desenhada antes de nascerem. Em suas casas, cuidariam das mulheres e dos filhos com quem povoariam a terra. Do lado de fora, fariam tudo o que bem entendessem, como dois deuses solitários. Reconstruiriam o vilarejo, ajeitariam as estradas. Ergueriam até uma igreja para Butrus rezar sem precisar descer até Damasco.


Agora Butrus dizia que também queria ir para o Brasil. De onde vinha aquela ideia estúpida? Das cartas do tio Mikhail? Parecia um plano mais antigo. Uma ideia tão nítida não podia ter se formado há pouco tempo. Yacub se lembrou do simsar que tinha visitado o vilarejo alguns meses antes. Um homenzinho detestável de chapéu, caminhando de casa em casa, tomando café no pórtico do velho Adil. Vendendo bilhetes de vapor, prometendo trabalho no além-mar. Yacub não deu muita importância ao homem. Mas pensando agora, conseguia imaginar Butrus passando, entreouvindo a conversa. Quase podia enxergar a semente do Brasil sendo plantada na cabeça dele. Uma árvore dessas com que Butrus sonhava, com um tronco tão largo que era impossível de abraçar.

Entrou em casa de cabeça baixa. Encontrou o pai sentado à mesa e a mãe agachada num canto, separando folhas de hortelã com as mãos. As duas tias tagarelavam encostadas no batente. Yacub foi ao armário, agarrou uma garrafa de áraque, outra de água e dois copos de vidro. Sentou ao lado do pai e serviu a bebida. Sozinho no copo, o áraque era transparente. Misturado à água, ficava turvo como leite de cabra. O silêncio entre eles se alongava enquanto olhavam as linhas tênues que separavam os dois líquidos antes de se tornarem apenas um. A mãe limpou as mãos no vestido.

— Aonde você foi?

— À casa do tio Matar. — Fazer o quê?

— Fumar.

— Fumar. — Ela suspirou, levantando bem alto as mãos sujas de terra. — Meu filho, um dia as pedras da casa velha vão cair em cima de vocês dois. Ya rab!

O pai continuava calado, sentado à mesa.

— A gente não fuma dentro da casa, mãe. É no jardim. Não vai cair nada em cima da gente.

— No jardim? Mas no jardim tem o poço, meu filho. No jardim não pode.

— A gente não fuma perto do poço — defendeu-se Yacub, enquanto seu pai se endireitava na cadeira.

— Em poço de casa abandonada a gente não toca — disse o pai de repente, um aliado da mulher.

— Eu já avisei tantas vezes para você não perturbar o jinni — repetiu ela.

Yacub respirou fundo. Quando passava a tarde com Butrus, se esquecia dos pais. De como eram velhos. De como as ideias deles tinham apodrecido. Os dois recitando livros sagrados, acreditando em lendas antigas, respeitando costumes de ontem. Garantindo existir uma criatura de fogo vivendo num poço abandonado. Quase fazia com que concordasse com Butrus. Com que fosse ao escritório do simsar em Beirute, gritando por cima do chapéu dele: dois bilhetes para o Brasil! Mas quando pensava em São Paulo, Yacub já sentia saudade dos pais.

— A gente não vai abrir o poço — disse. Satisfeita, a mãe pôs os pratos na mesa.

À noite, Yacub deitou sem vontade de dormir. Alguma coisa na garganta. O vento entrava pela janela aberta e esticava a pele dos braços como numa febre fria. Pensou no dia seguinte. Não no dia seguinte mesmo, depois que acordasse. No dia quando, depois da partida de Butrus, tivesse de ir sozinho ao campo. Quando enrolasse o próprio cigarro, encostado no muro, e esperasse a luz do dia dar lugar ao breu. Quando, sem Butrus, ouvisse o som dos répteis rastejando embaixo das pedras, entre as folhas secas. O vazio do futuro o envenenava.

Série Herança do artista Gui Mohallem, exclusivo entretempos
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