Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros

'Essa conversa de meritocracia não funciona', diz Alexandre Rampazo

Autor aprofunda papo sobre relações raciais no Brasil em novo livro de sua protagonista mais famosa, 'Um Lugar para Coraline'

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Ilustração de

Ilustração de "Um Lugar para Coraline", de Alexandre Rampazo Divulgação

Alexandre Rampazo está de volta. Rodeado de estantes com espaços ainda vazios e caixas fechadas espalhadas pelo apartamento, o ilustrador voltou neste mês a São Paulo após uma temporada de dois anos em Portugal.

"É aquela frase atribuída ao Tom Jobim, né. Morar fora do Brasil é bom, mas é ruim. Morar no Brasil é ruim, mas é bom", diz Rampazo. "Tem toda uma questão de identidade e de não pertencimento. Lembro que um dia estávamos assistindo à televisão e começou um especial sobre a morte de um humorista português. Foi uma comoção nacional, mas aquele luto coletivo não me dizia nada. Eu nunca tinha visto aquele cara, não fazia parte da minha memória afetiva. E isso impacta."

Mas não é só o autor paulistano que acaba de retornar. Coraline, uma de suas personagens mais famosas, também está de volta. Sete anos após protagonizar o já clássico "A Cor de Coraline", a menina definida como "pensadeira" conduz agora uma história inédita. "Um Lugar para Coraline", espécie de continuação do primeiro livro, chega às livrarias pela editora Rocquinho.

Não é que Rampazo tenha deixado de escrever e ilustrar durante a temporada lusitana. Como costuma ocorrer com diversos autores de literatura para a infância, seu trabalho é volumoso.

Nesse período, ele publicou no Brasil títulos como "Vai Rolar", "O Que Você Vê", que ganhou o selo Cátedra Unesco de Leitura, e "Silêncio", vencedor do troféu da APCA, a Associação Paulista de Críticos de Artes, e segundo lugar no prêmio da Biblioteca Nacional. Fora isso, ele acaba de lançar também "A Caixa", parceria com a escritora Paula de Santis, que sai pela Ciranda na Escola.

Mas a volta de Coraline é diferente. O primeiro livro se tornou um marco após o lançamento, em 2017. "O sucesso me assustou um pouco. Inspirou até um samba-enredo da Pimpolhos, a escola de samba mirim da Grande Rio. Não precisava mais de nada, né? A Coraline já tinha dado o recado", conta. "Mas o tempo passou e as discussões sobre o que é ser negro no Brasil ficaram mais afloradas."

"A Cor de Coraline" começa com uma pergunta feita por um colega da personagem: "Coraline, me empresta o lápis cor de pele?". A partir daí, a narrativa é tomada por uma espiral de reflexões da menina, que aparece ilustrada por Rampazo sem cores definidas, fazendo com que o leitor não saiba qual é a cor de sua pele. Até que, no fim, descobrimos que a personagem é negra.

Ilustração de "Um Lugar para Coraline"
A protagonista de "Um Lugar para Coraline" - Divulgação

A revelação é necessária neste texto, porque o debate racial reaparece de maneira ainda mais profunda e complexa no novo "Um Lugar para Coraline". Desta vez, a garota participa de um campeonato de natação na escola. Com uma linha do tempo não linear e bem amarrada, a obra se divide entre os pensamentos da protagonista, a própria competição na piscina e os bastidores da vida dela no colégio.

"Imagine uma criança que sai da escola, vai caminhando para casa, encontra o almoço em cima da mesa, come, dá uma cochiladinha e só depois começa a fazer a lição. Agora pense em outra que estuda no mesmo colégio, mas precisa atravessar a cidade de metrô e ônibus, cuidar do irmão mais novo em casa, esquentar a comida que a mãe deixou guardada e resolver um monte de coisas antes de começar a estudar. Se colocar na balança, você vê que essa conversa de meritocracia não funciona", diz o autor.

Ilustração de "Um Lugar para Coraline"
Reinaldo, uma das personagens de "Um Lugar para Coraline" - Divulgação

Tudo isso ajuda a dar forma ao novo livro, mas de maneira estética e literária, sem didatismos pedagógicos já mastigados. Rampazo opta pelo caminho das metáforas e dos simbolismos para tocar nessas questões, que alcançam seu ápice numa das ilustrações de página dupla.

Nela, o leitor vê a piscina de cima, a partir de um ponto de vista aéreo e vertical. Sete crianças estão nadando, cada uma em sua raia. Cinco delas são brancas, enquanto duas são negras —justamente as que ficaram um pouco para trás.

"Pra eu ser a melhor, tenho que ser melhor que o melhor duas vezes", comenta Coraline no texto.

Retrato do ilustrador Alexandre Rampazo
Retrato do ilustrador Alexandre Rampazo - Divulgação

Embora a narrativa converse diretamente com discussões sobre a cor da desigualdade no Brasil, o quanto a vida em Portugal, onde casos de racismo e xenofobia contra imigrantes não param de crescer, influenciou a escrita da obra?

"As pessoas costumam definir o brasileiro pelo samba, pelo bom humor, por ser um povo receptivo. Mas acho que não é nada disso. A gente é muito criativo. Tira qualquer problema da frente, acha solução para qualquer coisa. Mesmo que não saiba fazer, a gente se vira. Vi muito isso nos brasileiros em Portugal."

Ou, como diria Coraline, é preciso "ser melhor que o melhor duas vezes".

Um Lugar para Coraline

  • Preço R$ 69,90 (40 págs.)
  • Autoria Alexandre Rampazo
  • Editora Rocquinho

A Caixa

  • Preço R$ 64,90 (32 págs.)
  • Autoria Paula de Santis e Alexandre Rampazo
  • Editora Ciranda na Escola

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