Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Ser multitarefa parece uma grande conquista, mas saber desacelerar é preciso

Hora do banho passou a ser o único momento de descanso para os ouvidos, apesar do barulho da ducha

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Quando a gente não enxerga, o ouvido se desenvolve muito?

Essa certamente é uma das perguntas que mais escuto. Lendo o neurocientista Oliver Sacks, em especial o livro Alucinações Musicais", aprendi que a pessoa com cegueira congênita muito provavelmente sim. Isso acontece porque áreas do cérebro que seriam responsáveis por processar a visão passam a ser recrutadas para apoiar outros sentidos.

Um resultado disso é muitos cegos terem ouvido absoluto, ou seja, conseguem reconhecer notas musicais em qualquer contexto —a maioria das pessoas tem ouvido relativo, ou seja, pode treinar para distinguir uma segunda nota quando escuta e sabe a altura da primeira.

Para quem deixou de enxergar mais tarde, como no meu caso, ainda tenho minhas dúvidas sobre se isso acontece. De fato, há muito tempo consigo escutar um apitinho muito agudo e baixo que a televisão de válvula faz quando a tela está apagada, mas ela ainda segue ligada. Geralmente as pessoas não escutam. Mas não é uma habilidade essencial, a menos quando a conta de luz está muito cara.

Possivelmente a capacidade de reconhecer sons e alturas não tenha mudado muito para mim. Por outro lado, a relação que tenho com a audição se transformou completamente. Passei a estar atento ao ouvido o tempo inteiro.

Desperto pela manhã com o barulho da louça sendo lavada por meu padrasto por volta das 7h. Ainda acordando, com auxílio de meu leitor de telas, escuto notícias no site da Folha, lidas em velocidade que é incompreensível para quem não está acostumado. Na hora do café da manhã, posso ouvir alguma música ou podcast. Vou trabalhar, coloco um fone de ouvido para escutar meus emails e o que digito. Abro as redes sociais e ouço as mensagens de todos. Hora do almoço, aciono um livro no aplicativo do Kindle do celular e escuto enquanto faço a refeição. Ando pela casa ainda com a voz metálica me acompanhando.

Um dos raros momentos em que peço licença e me distancio das vozes que leem o mundo digitalmente para mim é quando sento no piano e, novamente, encho meus ouvidos de som.

Nesse pequeno resumo do que é um dia normal meu, há talvez um momento em que há silêncio. A hora do banho. Se bem que o banho aqui em casa é com uma ducha bem barulhenta. Não fosse isso, talvez tivesse aprendido um jeito de torná-lo mais produtivo.

A gente tende a ficar todo orgulhoso dessa capacidade de ser multitarefa, de ler toda a tetralogia da Elena Ferrante enquanto come macarronada de olhos fechados e sem manchar a roupa. E, pra ser sincero, é bem legal dar conta de trabalho, cultura e lazer em um grande volume vivendo em uma sociedade que ainda duvida das capacidades de quem tem uma deficiência.

Mas, depois de anos nesse agito, começo a me questionar o quanto desacelerar um pouco não traria paz para meus ouvidos e minha mente sempre acelerada. Tento colocar o celular do lado enquanto almoço. Três minutos depois já estou com ele na mão novamente, passando entre os vídeos recomendados pelo YouTube.

Pensei em um plano infalível. Quando encontrar um podcast que tenho vontade de ouvir, em vez de guardar para deixar tocando no fone durante o café da tarde na padaria, eu deveria sentar quietinho e escutar o conteúdo com atenção e prazer. E depois, na hora do café, sentir o gosto do café. Falta só colocarm em ação.

O ouvido é uma ferramenta ótima para realizar atividades multitarefa, daí ser muito mais frequente escutar rádio no carro do que assistir à televisão. Imagino que tecnologia para produção em larga escala e popularização em custo razoável das telinhas em automóveis já está disponível, elas estariam em todos, se não fosse pouco conveniente e até perigoso ficar com os olhos distraídos enquanto se dirige.

Mas não penso que a audição seja o único sentido que pode nos afastar das tarefas que estamos fazendo, seja para torná-las menos tediosas, seja por não conseguirmos lidar com uma ansiedade nossa que nos faz querer realizar muito em pouco tempo ou absorver o máximo de informações possíveis nesses tempos de comunicação desenfreada.

Posso não ver, mas é fácil saber quando alguém com quem estou conversando está dando uma olhadinha em fotos nas redes sociais ao mesmo tempo em que finge prestar atenção no diálogo. Não é preciso uma audição sobrenatural que escuta os dedos encostando na tela do smartphone, é só prestar atenção no tom de voz e na duração das pausas para perceber que alguém está presente com o corpo, mas com a mente em outro lugar. Irônico é que, justamente para conversar, é praticamente impossível eu ficar com meus ouvidos atentos em outra coisa, então fico falando sozinho.

Como dar o primeiro passo em relação à desaceleração? Nesses dias, descobri com atraso que a internet está repleta de vídeos com centenas de milhares de visualizações da monja Coen ensinando a respirar e estar presente no agora. Que felicidade ouvir sua voz tranquila a ensinar que tudo passa, o importante é estar aqui.

Gostei tanto que agora meus ouvidos se deleitam ouvindo a melodia de seus ensinamentos. Como a rotina está apertada, decidi escutar suas lições deitado, de noite, esperando o sono chegar.

Deu errado. Acho que ainda não aprendi nada. Dormi no meio de uma palestra, acordei no final e agora estou com insônia... Vou meditar um pouco para ver se me acalmo. Em silêncio absoluto.

Há também uma outra atividade, que para mim ainda é nova, que preciso fazer em silêncio: ler em braille. Pode não ser tão rápido quanto uma leitura feita por um robô, mas proporciona um momento de ouvir sua própria voz interior, como fazem as pessoas que leem com os olhos.

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