Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Quando você vai morrer?

A resolução do ano é aceitar perguntas sem respostas

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Vejo listas de pessoas mortas no ano. São homenagens àqueles que não acordarão em 2024. Testemunhas do tempo ficam pelos pontos da curva. Morrer é a curva na estrada, escreveu Fernando Pessoa. É apenas não ser visto.

Lembro de uma bruxa com sua bola de cristal, resquícios de alguma história da minha infância, prevendo a morte das crianças. Se a minha pudesse ser anunciada, eu olharia na bola? É um buraco da fechadura sem volta. Certeiro ou não, mudaria meu comportamento, quem sabe, alterando o resultado final. Imagino o caminho até lá mais tortuoso. A expectativa dói.

A previsão de nossas mortes já é feita pelas companhias de seguro, de uma forma mais genérica. Os obituários de pessoas muito conhecidas também são antecipados. Testamentos são lavrados, pedidos são colocados, de forma sutil, em almoços familiares. Quem pescar, pescou. "Ah, mamãe ta falando da falta de espaço para enterros no mundo, acho que ela está me dando uma dica, ela quer ser cremada".

Pesquisadores dinamarqueses criaram um modelo de inteligência artificial que acerta, em 78%, se as pessoas irão morrer nos próximos quatro anos. Classe social e condições preexistentes são fatores determinantes. Esse sistema será aprimorado até transformar a bola de cristal em estatística. Saberemos, dentro de uma variação, quando iremos morrer. No intervalo da imprevisibilidade, estarão as mortes por suicídio, acidentes de trânsito, quedas aparentemente bobas. É provável que os feminicídios e a morte por guerras sejam contemplados na previsibilidade, infelizmente.

Saberemos a data da nossa morte não por curiosidade, ou por termos a chance de tirarmos o máximo proveito dos momentos que restam. Essa previsão é um caminho sem volta porque ela é lucrativa. Ela interessa às corretoras, à venda de seguros e à medicina que promete adiar o fim. Os remédios poderão ser divididos em categorias de acordo com a previsão de cada um. Os preços, também. Quem está mais perto da sua previsão, gasta mais.

A reflexão sobre a data de nossa morte é um negócio. Talvez seja por isso que a morte no folclore brasileiro é um ser que negocia. Cada um chega pedindo mais uns dias, todos têm suas justificativas. É assustadora a ideia da morte não esperar um reencontro acontecer, uma carta ser escrita, um hábito ruim finalmente deixar de nos controlar.

Acabei de ler um texto da New Yorker que fala sobre esses hábitos: a ciência demonstra que a quebra de hábitos ruins não exige força de vontade. Devemos procurar outras estratégias. "hábitos, bons e ruins, sempre fascinaram filósofos e administradores públicos. Aristóteles, em 'Ética a Nicomaco', refletiu sobre os conceitos atuais de virtude e concluiu: alguns pensadores sustentam que é por natureza que algumas pessoas se tornam boas. Outras, por hábito e outras por instrução". Na opinião dele, são os hábitos que tornam alguém bom. A estratégia seria não resistir àquilo que te faz mal, mas sim criar estratégias para que não seja mais uma opção.

Nosso destino é um produto desses hábitos. Na virada de ano, costumo repensá-los. A listinha do que eu gostaria de mudar, ou perpetuar, pouco muda. Nessa previsibilidade, a data da minha morte se confirma. Só não quero ter acesso a ela. To feliz na ignorância. Não estou em busca de todas as respostas do mundo. Posso me satisfazer com perguntas não respondidas. Talvez, minha resolução do ano seja essa. Aceitar as respostas que nunca virão.

Não quero saber a data da minha morte, apesar de ter a consciência de várias empresas já me colocarem em alguma variação probabilística. Viro o ano planejando sem modelos matemáticos. Um voo cego em direção ao que eu desejo, nem sempre ao que é possível. Desejar já está de bom tamanho. Lembro do Fininho, sepultador aposentado da cidade de São Paulo, me falando sobre isso em nosso primeiro encontro no cemitério da Penha, em 2015. Eu pedi uma dica para viver 'o hoje'. Ele respondeu: "Acorde bem humorado. Humor é fundamental. Aproveite as delícias da vida, aquilo que você acha bom. Faça o que você gosta de fazer. Você tem que estar próximo daquilo que você deseja. Nem precisa ter aquilo que você deseja. Estar próximo é uma situação muito interessante. Você tem a expectativa. Na vida se pode ter expectativas, nunca certezas. Eu não tenho certeza do dia de amanhã, mas eu tenho a expectativa. A manutenção da própria vida… Viver não é acumular dias'".

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