Não Tem Cabimento

Joana e Ana Carolina, sob pseudônimos, falam sobre anorexia, bulimia e outros transtornos alimentares e de imagem

Não Tem Cabimento - Joana e Ana Carolina
Joana e Ana Carolina
Descrição de chapéu Todas saúde mental

Exercícios físicos, em excesso, podem fazer mais mal do que bem

Voltei a fazer ioga porque mexer meu corpo me faz bem e me proporciona um momento de reflexão

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"Olá, olá. Seja muito bem-vinda, muito bem-vindo ao canal", me diz a voz da instrutora de ioga em vídeo gravado para o YouTube. Eu gelo.

É que é a primeira vez desde a pandemia que eu estico meu tapetinho para acompanhar uma aula prática e a voz da professora me lembra cheiro de álcool em gel, máscaras compradas em lojas de EPIs e mais de mil mortos por dia.

Postura do Gato, a Marjaryasana, na Ioga - Pmpueng/Adobe Stock

Respiro fundo. O cheiro da vela aromática que acendi me diz que tudo fica bem. Sobrevivi. Sobrevivemos (mas a que custo?). Continuo. O próximo movimento é inspirar, levantando os ombros na altura das orelhas, e expirar, relaxando, soltando. "Ok, nós conseguimos", digo pra mim mesma.

Além das memórias coletivas terríveis do período de 2020 a 2022, me vem à memória um comportamento específico que tive nos tempos de quarentena: seguir vídeos de tutoriais de exercícios e me desafiar: "Se essa influenciadora promete secar 10kg em uma semana, eu consigo secar pelo menos 15kg se me exercitar o dobro do recomendado e repetir a sequência duas vezes na semana. Não é?"

Não, não é. Estou me preparando para a postura do Guerreiro Dois e me lembrando que fazer uma prática de ioga não vai me levar de volta para o limbo de exercícios à exaustão. A ioga me faz bem, estou sendo acompanhada por profissionais que me recomendaram voltar ao tapetinho. Respiro.

Para alguém que batalha contra transtornos alimentares, como eu, ambientes que pregam saúde e bem-estar a qualquer custo podem ser perigosos. Eu frequentei uma academia de musculação, dessas de rede, por um tempo depois que o "novo normal" se tornou só "normal" de novo. Uma balança colocada do lado do bebedouro me aterrorizava.

Certa vez, enquanto fazia uma caminhada na esteira, observei um rapaz se pesar pelo menos três vezes, uma a cada vez que terminava uma série. Não sei se ele tentava se convencer que os números mudariam depois de fazer uma sequência na cadeira flexora, mas ele retornava.

Uma outra vez, brinquei com uma amiga que após fazer algumas flexões simples de braço já era possível ver meu muque se formando. Uma menina ao lado passou o restante do treino observando o próprio braço, não sei dizer o que se passava na cabeça dela, mas, na minha, eu queria mesmo que os músculos surgissem depois de 5 repetições.

Nas redes sociais são tão frequentes os stories no espelho da academia com a legenda "o de hoje tá pago" quanto as piadas com quem posta esse conteúdo. É engraçado como a gente sempre parece sentir que está devendo algo e que deve, portanto, pagar.

De volta na pandemia, eu tentava "pagar" por toda refeição que fazia me exercitando compulsivamente. Não ajudava consumir conteúdo de pessoas que se referem a alimentos como "gordices", "dia do lixo" ou resumem a alimentação em proteína, carboidrato, calorias. Eu sempre estava em débito, nunca "comia limpo" o suficiente, podia sempre aumentar a minha massa magra.

Voltei a fazer ioga porque mexer meu corpo me faz bem e me proporciona um momento de reflexão. Meu corpo me sustenta o dia todo, me leva a lugares, me permite abraçar quem eu amo, cicatriza, regenera. Meu coração bate, meus pulmões expandem e contraem. Minha mente, por vezes catastrófica, também me permite imaginar coisas bonitas, futuros promissores e, mais importante, me permite me perceber aqui e agora. Vivendo apesar de, mas vivendo, assim mesmo.

Saio da postura do Lagarto e fico um tempo na postura da Criança. É bom viver.

Quando chega o momento da Savasana, permito todos esses pensamentos passarem por mim, como um pingo de tinta num copo d’água e serem diluídos. Eu sou todas essas outras versões de mim, mas a versão que eu sou agora se permite praticar ioga sem pensar no próximo vídeo, na próxima sequência de exercícios, na quantidade de calorias que eu preciso gastar para compensar o que quer que seja que eu tenha comido.

Eu me sinto bem aqui e agora. E é tudo que importa.


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