Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Errei sobre sexismo no consultório, mas o sistema de saúde também erra

O pano de fundo de minha discussão com oncologista infelizmente permanece

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– Alô, Susana? O número era dos compridos tipo PABX de hospital. Desses que eu aprendi a temer desde que, no dia do meu diagnóstico de câncer, cinco anos atrás, meu telefone acumulou 8.599 ligações semelhantes, prenúncio do antes-depois.

Na hora liguei os pontos: minha oncologista. Meu coração aos pulos. A voz dela, peculiarmente doce de me-mel. Algo extraordinário, considerando sua persona usual de Clínica Arretada Fria Fica-Feliz-Que-Cê-Tá-Viva.

– Estou ligando pra dizer que já subi o seu informe médico novo na [plataforma de saúde pública española].

Poucos dias antes desse telefonema, eu tinha publicado na Folha um artigo sobre sexismo no consultório médico, partindo de uma recente discussão acalorada com a supracitada que terminou, errm, bem mal.

É agora. Preciso desabafar, pensei.

Sentada em um canto, mulher se dobra para a afrente e abraça os joelhos, escondendo o rosto
Pixabay/Divulgação

Mas, antes que eu dissesse qualquer coisa, ela emendou, hiperglicêmica:

– E eu queria te pedir desculpas.

Ora, que surpresa, mas não.

– Passei todo o fim de semana dando voltas ao assunto, disse. Não agi bem, e você tem razão: o informe poderia ter sido melhor escrito, e eu poderia ter tido mais empatia com você e seus sintomas.

Foi como se me resgatassem de uma nuvem de chumbo.

Agradeci por ela ter ligado. Por se retratar e se mostrar solidária comigo. Fiz um mea-culpa por ter sido agressiva na maneira de abordar minha insatisfação, ela também. Fim.

Pazes feitas com a oncologista, o pano de fundo da história infelizmente permanece. O motivo da nossa discussão teve a ver com estereótipos em torno da saúde da mulher. Cujas frases mais emblemáticas poderiam ser:

– Tá naqueles dias?

– Tá tudo na tua cabeça!

– Deixa de fazer drama. Etc.

Em resumo, a médica tratou efeitos secundários de um tratamento oncológico como frescura minha, um processo biológico e portanto inexorável de Ser-Mulher. Isso, e o agravante de ela ser mulher como eu, me fez subir no caixote de fruta de revolta. Eu exagerei no tom da conversa e acabamos brigando. Mas estaria exagerando meu ponto de vista?

Em entrevista à RFI, a historiadora francesa Muriel Salle, professora da faculdade de Medicina Claude Bernard, em Lyon, e autora, com a neurobióloga Catherine Vidal, do livro "Mulheres e Saúde, uma Questão Masculina?", avalia que a visão macho-centrista da saúde começa na sala de aula.

"É preciso conscientizar os estudantes sobre ideias pré-concebidas envolvendo homens e mulheres", diz. "Por exemplo, que eles são mais resistentes à dor e elas, mais emotivas". Se isso soa abstrato, os dados, por outro lado, vêm confirmando uma e outra vez o que muitas de nós, mulheres —e, diria, qualquer coletivo não-branco-cis—, já intuímos talvez há muito tempo: que persiste um tratamento de gênero tendencioso no âmbito da saúde, com múltiplos impactos.

Segundo pesquisas realizadas em diferentes países, mulheres tendem a receber diagnósticos mais tarde do que homens em pelo menos 700 doenças. Vivemos mais, mas com menos qualidade de vida. Um estudo na Dinamarca com 6,9 milhões de pessoas, por exemplo, constatou um atraso no diagnóstico de 2 anos em casos de câncer femininos e até 4,5 anos para doenças metabólicas como diabetes tipo 2.

Descrédito da dor. Embora sejam duas vezes mais propensas a sofrer de dores crônicas do que homens, mulheres também tendem a receber menos prescrição de analgésicos e a ter seus sintomas de dor descartados como psicológicos ou "psicossomáticos". O descrédito em relação a sintomas pode prejudicar mulheres que convivem com doenças excruciantemente dolorosas como a endometriose —neste caso, o diagnóstico correto pode demorar de 7 a 10 anos.

A despeito dos avanços médicos nos últimos anos, mulheres ainda são até duas vezes mais propensas a morrer de ataque cardíaco, por conta de enfoques investigativos e terapêuticos principalmente masculinos.

No âmbito de doenças multifatoriais como as autoimunes, em que três de cada quatro pacientes são mulheres, o périplo também pode ser árduo. A presidente da Associação Americana de Doenças Autoimunes, Virginia Ladd, diz que 40% dessas mulheres reportam "ter ouvido de um médico de que são queixosas ou demasiado focadas em sua saúde". Em média, elas passam por quatro especialistas em três anos antes de obter um diagnóstico.

"Quando elas finalmente descobrem o que está errado, ficam agradecidas, mesmo sabendo que têm uma condição crônica", diz. "Finalmente, alguém as ouviu."

Sem falar no "gender bias" predominante até recentemente no campo investigativo. Entre 1977 e 1993, por exemplo, a FDA eliminou a participação de mulheres em idade fértil da maioria dos ensaios clínicos. Apenas pensem nas consequências. Etc, etc.

Mulher segura um blister verde com comprimidos
Ora, pílulas: mulheres tendem a receber menos prescrição de analgésicos e a ter sintomas de dor descartados como psicológicos - Susana Bragatto / Reprodução


Por tudo isso e mais, sou grata por aquela ligação numa segunda-feira cinza. Durou apenas um minuto, custou valentias e mudou tudo.

Mais do que feliz por mim, pensei que, num futuro, uma certa médica num certo canto do mundo talvez poderá segurar as mãos de uma paciente angustiada com mais empatia, realmente escutando o ser humano que tem diante de si. Isso seria lindo.

Depois de desligar o telefone, sentei num banco de praça e chorei livremente, sem ligar pros vô-minino-mulheres-de-sobretudos-esvoaçantes da manhã passando por mim e me observando com curiosidade.

Uma sementinha, uma árvore, floresta.


Eu errei
Inspirada em iniciativa do New York Times, a Folha convidou seis de seus colunistas a revisitarem erros e opiniões superadas que foram publicadas em suas colunas ao longo dos anos

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