Descrição de chapéu
João Batista Natali

Errei sobre a Ucrânia

Não acreditei que haveria guerra; achei também possível evitar a emergência da extrema direita na Itália ou na Hungria

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São Paulo

O conhecimento que possamos acumular sobre determinado assunto não nos transforma em proprietários de uma infalível bola de cristal. Pois essa bola ficou para mim embaçada e me levou a equívocos em dois temas de política internacional. Eu não acreditei que haveria uma guerra na Ucrânia e também achei que a União Europeia seria uma ideia o bastante generosa para impedir a emergência da extrema direita na Itália ou na Hungria.

Mulher ferida em bombardeio russo é fotografada na porta de hospital na cidade ucraniana de Chuguiv, leste do país, no primeiro dia da ofensiva militar múltipla ordenada pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin; é a maior ação do gênero na Europa desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) - Aris Messinis - 24.fev.22/AFP

Nos dois casos me consolo com circunstâncias atenuantes. A saber: não cheguei a defender publicamente essas duas teses equivocadas. O leitor da Folha que dá credibilidade a ideias publicadas sob minha assinatura não precisou me associar a um gritante "Erramos". Mesmo assim, raciocínios sem muito pé nem cabeça percorreram com sutileza de conteúdo alguns dos textos que produzi nos últimos anos.

Mas vamos por partes, e comecemos com a extrema direita. Ela foi uma tentativa de reaparição de fantasmas que poluíram o mundo na década de 1930 e que se baseavam em formas toscas de nacionalismo, incapazes de, hoje em dia, conceber a integração de aparatos econômicos plenamente globalizados.

As vantagens da fusão internacional de interesses era para mim muitíssimo evidentes numa perspectiva de construção da paz. Se eu sou uma empresa francesa que compra peças de uma congênere alemã para fornecer um produto ao consumidor italiano, é óbvio que não me interessa entrar em guerra com a Alemanha e com a Itália. A Europa se tornou um imenso e articulado clube de parceiros.

Por que é, então, que essa forma de pensar deu lugar ao extremismo de direita? Creio que desprezamos o medo despertado pela guerra civil da Síria e as ondas de emigrantes que procuravam se refugiar em países europeus que poderiam abrigá-los.

Os nacionalistas tiveram medo dos muçulmanos e trabalharam politicamente para fechar suas fronteiras. Era algo que já pulsava de maneira latente nos anos 1980, com a Frente Nacional francesa, ou, duas décadas depois, com o governo extremista da Áustria.

A semente impura germinou, e todo país europeu que se preze tem hoje neofascistas assoprando no cangote da política dos preconceitos e azedando a democracia parlamentar.

Por essa eu não esperava? Claro que não. Tanto que no ano 2000 eu me penitenciei junto ao leitor por ter colocado os pés em solo austríaco —Viena estava em poder da extrema direita— para cobrir com textos para a Ilustrada o Festival de Salzburgo. E vejam que a ópera e a música sinfônica eram na época um território cultural de resistência às concepções extremamente conservadoras do governo local.

Ainda hoje me recuso a engolir a seco com as barbaridades concebidas por essa senhora que virou primeira-ministra em Roma. De certo modo, preciso proteger meus pensamentos. Gostar de ler história e escrever profissionalmente sobre ela me fazem torcer o nariz para tudo o que transporte o cheiro fétido do fascismo.

Mas mudemos de assunto e do erro que cometi, e vamos para a Ucrânia. Ou melhor, vamos para as barbas do autocrata Vladimir Putin.

Se no início de fevereiro deste ano me encomendassem um texto sobre as tensões no leste europeu, eu teria certamente escrito que havia um acomodamento gerado, de um lado, pela expansão geográfica da Otan, a aliança militar ocidental, e de outro pela psicose inscrita ideologicamente na Rússia e que a faz temer qualquer movimento que ponha em risco sua existência como potência militar.

Minha ingenuidade consistiu em acreditar que os Estados Unidos tinham sido excessivamente mariquinhas ao se contentarem com algumas sanções econômicas quando Putin anexou, na Ucrânia, a península da Crimeia, lá se vão alguns anos. Em se tratando de territórios em que as linhas das fronteiras não coincidem com as linhas linguísticas, minha ingenuidade consistiu em crer que as populações de idioma russo acabariam automaticamente se entendendo.

Não foi o que aconteceu. A Rússia mandou seus blindados e seus drones sobre o vizinho com o qual se ressentia de uma antiga, mas não letal (acreditava eu) rivalidade. Deu também pena da Polônia, por receber um fluxo inesperado de refugiados ucranianos.

O fato é que o isolamento de Moscou foi tão imediato e contundente que a União Europeia e a Otan se exprimiam com uma única voz. E o notável foi que em nenhum momento os Estados Unidos deixaram o fígado falar mais alto e partir para um conflito que, se envolvesse o ocidente com a Rússia, nos colocaria a todos na vizinhança de uma nova guerra mundial.

E é claro que, em minhas subjetividades, a Ucrânia se transportava para Vila Mariana e para perto do aeroporto de Congonhas, minhas referências domésticas paulistanas. Minha solidariedade para com os ucranianos era semelhante à que senti quando, em minhas leituras de história, Hitler invadiu o país ou, antes disso, quando Stálin matou parte de sua população de fome por meio da socialização forçada da agricultura.

De certo modo, temos todos vizinhos morais. Sentimentalmente a Ucrânia é para mim como o Chile ou como a Argentina. Estamos no campo das afinidades éticas. E é em razão dessa proximidade que dói dentro da gente cada bomba que dilacera um civil ucraniano. O internacionalismo de minha juventude serviu para alguma coisa, ainda bem. Quando eu acerto e quando eu me engano.

Eu errei

Inspirada em iniciativa do New York Times, a Folha convidou seis de seus colunistas a revisitarem erros e opiniões superadas que foram publicados em suas colunas ao longo dos anos

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