Quase mil pessoas submetidas a trabalhos análogos à escravidão já foram resgatadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) nos três primeiros meses de 2023. As notícias sobre a exploração sexual de meninas por garimpeiros na Terra Indígena Yanomami (TIY), em Roraima, e o resgate de mais de 200 trabalhadores que atuavam na colheita e carga e descarga de uvas no Rio Grande do Sul, trancafiados e submetidos a jornadas de trabalho exaustivas, assustaram pela perversidade dos algozes associada ao sofrimento e vulnerabilidade das vítimas.
O fato de essas pessoas terem perdido a liberdade ao mesmo tempo que foram deslocadas para outro lugar, aquele onde se consumou a exploração de seus corpos e sua força física, é um indicativo da ocorrência do delito de tráfico de pessoas.
A mercantilização de pessoas é uma das mais antigas formas de exercício violento de poder. Nesses últimos séculos, os países têm procurado construir normas alinhadas aos valores de proteção do ser humano e aos interesses geopolíticos. Se os acordos sobre as pessoas extraídas do continente africano e escravizadas são uma ferida mal cicatrizada, pode se considerar bem sucedida a experiência da comunidade internacional que resultou na Convenção de Palermo da ONU de 2003, que define tráfico de pessoas, suas modalidades e formas de enfrentamento.
A Convenção de Palermo inspira a produção de normas e relatórios ao redor do mundo. No Brasil, houve a promulgação, em 2016, de lei federal. No âmbito mundial, o UNODC, escritório das Nações Unidas sobre drogas e crime, publica um importante relatório bianual sobre tráfico de pessoas. Em 2023, na sétima edição do relatório, a UNODC elencou 11 descobertas sobre este crime.
A evidência inaugural deste relatório é que, pela primeira vez, houve registro de queda no número de vítimas detectadas. Mas não há comemoração, já que estes números foram colhidos principalmente em período pandêmico, limitando as possibilidades de denúncias e empurrando o crime, ainda mais, para a obscuridade.
O segundo achado do relatório também é novidade: o tráfico para fins de exploração sexual foi menos detectado. Mas há, novamente, possível camuflagem para o dado: as vítimas deste crime nesta modalidade eram, comumente, identificadas em grandes avenidas, bares, boates, e demais locais públicos e hiperpopulosos. Com a pandemia, o funcionamento desses lugares ficou restrito. Logo, menos detecção.
Entre outras descobertas, mais duas a serem citadas: as mudanças climáticas multiplicam os riscos de a situação do tráfico ocorrer; e mulheres e crianças estão sujeitas a mais violências nas mãos dos traficantes, se comparadas aos homens. Os achados fazem sentido no âmbito local. Há urgência no engajamento global em torno de uma justiça da cultura climática, que inclui o olhar para grupos minorizados e as minorias, vítimas potenciais do tráfico humano; e o fortalecimento dos direitos das mulheres e meninas e a adoção de medidas que as protejam de todos os tipos de violência também lhes abre caminho para construção de um projeto de vida mais seguro.
Outra evidência diz respeito a como as vítimas "encontram" resgate ou ajuda, quando se percebem nestas condições: a maioria foge a partir de sua própria iniciativa. Este fato é relevante pois denuncia a pouca habilidade dos países em elaborar e implementar políticas públicas que enfrentem esse crime.
Esta evidência foi observada nos recentes casos das adolescentes exploradas sexualmente em terras indígenas e dos trabalhadores de vinícolas no Rio Grande do Sul. Em ambos, as vítimas conseguiram fugir e buscar ajuda. Somente por isso as situações nefastas foram interrompidas e conhecidas publicamente, suscitando debates sobre a importância de realização de ações fiscalizatórias e ainda sobre a necessidade de se buscar outras formas de responsabilização corporativa e accountability, este ponto tratado de forma discreta e superficial, camuflado na atrocidade descoberta e na menção ao dever de reparação - aos trabalhadores, apenas; e não às adolescentes.
"Desesperadas pra ter paciência", as pessoas vulneráveis ao tráfico humano disputam o centro do espelho com a sociedade brasileira, que continua a consumir roupas, bebidas, ouro, megaeventos musicais e outros produtos de empresas que lucram e compactuam com a exploração de gente traficada. "Alguma coisa está fora de ordem; fora da nova ordem mundial", já disse Caetano Veloso.
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Inês Virgínia e Julia Barreto foi "Tô" de "Tom Zé".
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