O mundo globalizado e interconectado trazia a promessa de encontro com a alteridade, isto é, uma aposta na aproximação das culturas e sociedades. Mas, diante de extremados discursos de ódio, desinformação, repulsa ao diferente e intensificação das bolhas comunicacionais e sociais, podemos afirmar que, atualmente, vivemos um "desencontro" com o outro. Como o algoritmo não é neutro, e sua estrutura pode definir e modelar o pensamento e a percepção geral da civilização, faz-se urgente pensar maneiras de expandir os pontos de vista das crianças e jovens para que, no encontro com a alteridade, haja espaço para florescer o entendimento das diversas culturas e realidades que habitam o mesmo "um só" planeta.
Entendendo comunicação e educação como campos centrais no enfrentamento das desigualdades e na construção de práticas e/ou situações que ampliem a consciência da diversidade, apresento aqui as expedições fotográficas - #helipavisita - que realizamos com alunos, jovens de 13 a 20 anos, moradores de Heliópolis, a maior favela periférica de São Paulo. "Helipa" é o apelido carinhoso com que os moradores se referem a ela.
A ideia inicial era a de fotografar a favela para pensarmos sobre aquele ambiente, mas, a partir da demanda deles – "a gente nunca sai (da favela) e quando sai é para aqui perto" -- não foi difícil perceber o "determinismo espacial" ao qual esses jovens estão sujeitos. Claro que uns saem mais, outros nunca, mas é nítida a dificuldade de "ir e vir" até começarem a trabalhar e poder pagar pelo seu transporte. Por isso, a grande maioria não conhecia a Av. Paulista, um dos espaços mais democráticos da cidade e na mesma linha de metrô que atende a favela.
Ao mesmo tempo que não conhecem muito da cidade, estes jovens têm celulares e ficam conectados produzindo e recebendo comunicações o tempo todo. Mesmo aqueles que não têm internet móvel, encontram um ponto de wi-fi grátis e se conectam com muita facilidade: acessam "o mundo" pelos seus celulares.
É importante observar as faces dessa contradição. Por um lado, milhares de jovens moradores da periferia das grandes cidades são privados do acesso à pólis e das práticas e sentidos de cidadania. Por outro, esses mesmos jovens são capturados pelas seduções das redes comunicacionais digitais, com suas coerções simbólicas e determinísticas.
Assim, em diálogo com a turma, resolvemos investigar outros entornos fora da favela. Sairíamos para "fotografar" lugares que gostariam de conhecer em São Paulo ou que dialogassem com a teoria das aulas. Fizemos da cidade nossa sala de aula, e a fotografia nossa maneira de apreendê-la por meio dos encontros físicos e intersubjetivos, da comunicação pelos gestos, diálogos, reflexões e reconhecimento.
Vivenciamos várias experiências muito ricas e espontâneas. Durante um passeio no Parque da Luz, um dos alunos, ao fotografar uma garota estrangeira que acabou se juntando ao passeio, percebeu que falava bem espanhol e reforçou o sonho de viajar para a Argentina. Almoçando com a turma na Pinacoteca, ao final, outro aluno disse surpreso: "nossa, professora, a coxinha de Helipa é muito, mas muito melhor que esta que comi aqui!!". Encontrar com a outra coxinha, ou reflexionar-se ao outro, é uma maneira de saber quão boa é a sua coxinha, ou seja, de se reconhecer sujeito. E é essa perspectiva que interessa destacar com a proposta dos encontros que realizamos.
Pesquisas do campo da educação e comunicação indicam o quanto pode ser emancipador viver uma experiência completa de comunicação. Tal prática aproxima as diferenças nos ambientes socioculturais, valoriza as relações de alteridade e, assim, aciona as noções de pertencimento e de reconhecimento como sujeitos do mundo.
É nesse sentido que as políticas públicas e/ou projetos educacionais devem se orientar: oferecer cenários para as sociabilidades entre extremos, a oportunidade de vivenciar outras perspectivas, o encontro com o "outro", independentemente se este é uma pessoa, uma avenida ou uma coxinha.
A urgência para este século e próximos passa por desenvolver a consciência de responsabilidade em nós e sobre nós. Esse é exatamente o objetivo das expedições fotográficas que realizamos. Daí vocês perguntam: Mas, e a fotografia? A fotografia serve para nos vincularmos ao mundo porque não estamos buscando a melhor "imagem" dele, mas sim ativar a percepção, cognição e intuição dos jovens que enfrentam uma realidade de extrema desigualdade social.
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Neste texto, a escolhida por Roberta Dabdab foi "Os Mais Doces Bárbaros", de Doces Bárbaros.
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