Seria razoável supor que, havendo um setor em que se verificasse maior equidade de gênero, esse seria o setor público. Afinal, ao menos quando se trata de cargos efetivos, o serviço público oferece chances iguais de admissão via concursos impessoais, salários iguais para desempenhar funções semelhantes dentro de uma mesma carreira, estabilidade no cargo e, muitas vezes, tempo de serviço como único critério para progressão.
Postas essas condições, o setor público poderia funcionar como um ambiente mais igualitário, onde as mulheres poderiam ascender na carreira tanto quanto seus pares do sexo masculino. No entanto, não é isso que se verifica na prática.
Segundo dados da PNADC analisados pela República.org, embora as mulheres representem 57% do setor público no Brasil, elas estão apenas em 39% dos cargos de direção e gerência. A média salarial de homens é 37% maior que a de mulheres. Quando adicionamos o componente racial, a diferença fica mais gritante: homens brancos têm média salarial 94% maior que mulheres negras.
As mulheres enfrentam dois tipos de segregação no mercado de trabalho, a vertical e a horizontal. A vertical é a que impede a ascensão a posições de liderança, o teto de vidro. Isso pode acontecer porque as mulheres sofrem discriminação ou porque se colocam menos disponíveis para ocupar esses cargos, por terem seu tempo mais comprometido por tarefas domésticas e familiares, ou ainda por uma combinação dos dois fatores.
Um estudo do Ministério da Gestão e da Inovação aponta que a chance de um homem em cargo de liderança ter filhos menores de idade é 3,2 vezes maior do que a de uma mulher. Esse dado é coerente com o fenômeno da penalidade da maternidade.
Já a segregação horizontal é a diferença na distribuição de gênero em algumas carreiras. As mulheres historicamente ocupam mais as chamadas "posições de cuidado", atuando em áreas como educação, saúde e assistência social, que concentram grande parte do serviço público e, em geral, têm remunerações inferiores.
Portanto, a despeito de apresentar alguns elementos que poderiam levar a mais equidade, o setor público não é capaz de sobrepor as forças igualitárias às forças segregativas.
Quando tiramos o zoom da análise de gênero, percebe-se que o setor público não tem feito um bom trabalho na redução das nossas desigualdades de uma maneira geral. Enquanto 50% dos servidores recebem até R$3.391,00, no topo da tabela existe uma minoria recebendo os disparatados supersalários, acima do teto constitucional. Em alguns recortes, o setor público apresenta desigualdade de renda superior à do setor privado.
O fato de o setor público não reduzir as distorções do setor privado, e em alguns casos até ampliá-las, poderia ser só mais um fato observado no Brasil, não fosse muito mais trágico.
Além de governos perderem a chance de se posicionar como empregadores modelo, algumas pautas caras a grupos específicos só avançam se esses grupos têm representação em espaços de poder.
A distribuição de absorventes em escolas é um exemplo de ação que só foi possível devido ao protagonismo de mulheres. Estudo recente lançado pelo Núcleo de Estudos Raciais do Insper e Fundação Lemann mostra que lideranças femininas investem mais em saúde e educação, tendem a reduzir em até 24% a mais a mortalidade infantil e têm até 35% menos chance de se envolverem em casos de corrupção.
O setor público brasileiro precisa ser capaz de corrigir suas distorções, pelo bem de seus profissionais e, mais ainda, pelo bem de todos nós.
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Neste texto, a escolhida por Helena foi "Mulheres do Brasil", de Maria Bethânia.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.