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Ao alcance de um 'touch'

Para leitor, vivemos uma pandemia de ansiedade disfarçada de revolução digital

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Walklenguer Oliveira

Em clima de "Indiana Jones e a Relíquia do Destino", eu estava me lembrando aqui de uma cena do filme anterior, "O Reino da Caveira de Cristal", quando a vilã, Irina Spalko (Cate Blanchett), senta no troninho dos seres interdimensionais e exige receber todo o conhecimento coletado por eles através da caveira de cristal. E acaba é ganhando uma baita enxaqueca espacial.

O resultado é como tentar enfiar toda a base de dados da internet em um pendrive de um gigabyte: toda aquela informação simplesmente torrou o HD da espiã.

Fotografia colorida mostra close de criança vendo tela de celular na altura do rosto
Criança com smartphone - Roman - stock.adobe.com

É no mínimo interessante o (mais que) possível paralelo entre Irina e a geração atual, que já nem sei direito se é a Z, Alfa ou Ômega 3, tamanha a sopa de letrinhas sociológica. Assim como essa geração, Irina quer tudo e quer agora. Mais que uma crítica ao nosso exército mundial de "candidatos a influencer", essa é uma triste constatação de que nascer na era digital é uma maldição disfarçada de bênção.

Afinal, poder ouvir a música que eu quiser, onde e quando eu quiser, não é uma bênção? E ter uma locadora de vídeo inteira dentro da televisão? E seria fantástico se existisse uma rede mundial de troca de informações, para que eu não precisasse ir até a biblioteca da USP consultar a Barsa a cada trabalho de escola quando eu era criança. Mas a que custo isso veio?

A geração Instagram não precisa esperar um dia inteiro pelo próximo episódio do Castelo Rá-Tim-Bum, não precisa copiar os trabalhos à mão na folha almaço e não precisa comprar um CD só para ouvir sua faixa favorita.

Mas a facilidade dos computadores criou o hábito do "copiar e colar" sem ler. A mordomia de não precisar esperar o próximo capítulo —e até poder pular a abertura! —se transformou no hábito de pular trechos e até de acelerar a velocidade das cenas. E, no tempo das playlists na palma da mão, me vi obrigado a perguntar a uma amiga se ela não ia me deixar ouvir nenhuma das músicas que ela queria que eu conhecesse inteira.

Se os avós da geração passada ficavam pasmos com a quantidade de horas que ficávamos diante da tela da televisão, assistindo desenhos ou jogando videogame, imagine hoje, que a criança já nasce com o celularzinho na mão, com todo aquele conteúdo ao alcance dos dedinhos, correndo telas de rolagem infinita sem absorver verdadeiramente nada.

É como se vivêssemos numa grande "Biblioteca de Babel", conto de Jorge Luis Borges sobre uma biblioteca sem fim que contém todos os livros, inclusive os que ainda não foram escritos. Podemos ter qualquer informação, mas percorremos os infindáveis corredores da internet passando os olhos por suas páginas sem nunca parar para realmente lê-las.

Isso não é exclusividade da geração atual. As pessoas que cresceram no mundo analógico e se viram obrigadas a migrar para o digital estão aos poucos perdendo a capacidade de esperar. Mas as que já nasceram nesse contexto sequer aprenderam a ter paciência, e esse é o problema: para essa geração, esse consumo picado de informação incompleta é normal. Quem viveu sem internet pelo menos consegue perceber que há algo de podre no reino da Grande Rede.

Estamos vivendo uma pandemia de ansiedade. Mas ela vem disfarçada de revolução digital.

Ter o mundo todo ao alcance de um "touch" é como se cada um de nós tivesse sua própria caveira de cristal no bolso, com todos os segredos do universo ao alcance das mãos. Mas como o próprio professor Jones diz a um aluno enquanto busca a caveira: "Se quiser ser um bom arqueólogo, tem que sair da biblioteca".


Walklenguer Oliveira, 33, mora em São Carlos (SP) e é realizador e educador audiovisual.

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