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A Vida partiu

Leitora relata como foi a perda de sua companheira canina

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Anita de Melo

Não importa quais sejam as nossas circunstâncias, um dia perderemos tudo o que amamos, envelheceremos, adoeceremos e partiremos. Precisamos, diz a poeta norte-americana Jane Hirshfield, descobrir como viver bem com isso.

No último mês, a minha melhor amiga e companheira canina, Vida, esteve muito debilitada e as visitas à clínica veterinária aumentaram. No dia 6 de outubro, amanheceu com arritmia cardíaca e ofegante.

Recusou-se a comer. Voltamos à clínica veterinária. Um ultrassom mostrou um enorme tumor no baço e um exame de sangue revelou anemia. Foi-me dito que ela muito provavelmente estava com hemorragia interna, pois tudo indicava ruptura do tumor que teria liberado uma grande quantidade de sangue internamente. Como ela estava na casa dos quinze anos, não se recomendou cirurgia, mas a eutanásia.

Aterrorizada e em pânico, não consegui decidir se a minha melhor amiga continuaria a viver ou se deixaria de existir. Trouxe-a de volta para casa. Passei a noite toda ao lado dela. Noite soturna.

A cachorra Vida, da leitora Anita de Melo
A cachorra Vida, da leitora Anita de Melo - Leitor

Ela não melhorava, eu me afligia. Como disse o escritor Elie Wiesel em "A Noite", "jamais me esquecerei daquela noite que me privou, por toda a eternidade, do desejo de viver", porque fui entendendo que eu tinha de ajudá-la a partir, evitar sofrimento prolongado.

Se tomar a decisão causou atroz sofrimento, estar ao lado dela durante todo o processo foi a experiência mais brutal e dolente que já passei. Saber que a eutanásia é a coisa certa de se fazer não alivia o martírio de presenciar a interrupção de uma vida, e de saber que você é responsável por aquilo.

Foi como entrar, nas palavras de Clarice Lispector em "Água Viva", "em contato com uma realidade nova para mim que ainda não tem pensamentos correspondentes e muito menos ainda algumas palavras que a signifique: é uma sensação atrás do pensamento". E esta sensação é excruciante.

Ela estava desfalecida ali na maca. Eu segurava uma das suas patinhas, quando me lembrei de lhe dar água —nas últimas semanas ela estava tomando muito água, devido ao câncer.

Peguei a minha garrafa d'água e, aos poucos, fui despejando na boca dela. Ela começou a lamber e me lançou um olhar, daqueles de tantas vezes, profundo, que sempre me fez indagar o que é que se passava em sua cabeça sem nunca saber.

Seria a última vez que me olhava. Eu nunca entenderia.

Anita de Melo nasceu e cresceu em Uberlândia (MG), onde também se formou em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia. Fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos. Atualmente é professora de português e literaturas lusófonas na Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul.

O blog Praça do Leitor é espaço colaborativo em que leitores do jornal podem publicar suas próprias produções. Para submeter materiais, envie uma mensagem para leitor@grupofolha.com.br

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