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Casa que não é minha

Leitor escreve relato nostálgico da infância na casa dos avós

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Matheus de França Chagas

A minha casa não é minha: vovó e vovô não moravam lá, mas para lá fugiam e me levavam sempre que podiam. É onde um deles nasceu. É branca de janelas verdes, remendada, ampliada, melhorada, e sim, de novo, de um jeito que não o oficial: minha.

O chão são ripas grandes de madeira, algumas soltas. No quarto da direita, cuja porta fica de frente para o cômodo minúsculo em que o bisavô cortava ternos, passei escondido, até não caber mais, por entre as tábuas do piso que me deixavam cair no porão cheio de ripas e de aranhas e de medos da infância.

O quarto do meio, dos avós, tem a cama canoa, afundada também no meio, onde, presumo, eles ficavam quando a noite era mais escura.

Casa que fazia parte da antiga vila de casas operárias, localizada na rua Padre Estevan Pernet - Adriano Vizoni -15.jun.21/Folhapress

A temperatura da casa e da cidade era mais baixa porque o rio corre ali onde o quintal, com uma jabuticabeira, uma goiabeira e vestígios de fogueira, termina.

A casa que não é minha, mas acaba sendo, tem uma plantação de hortênsias que a bisavó brava, que não conheci, amava. Elas hoje brotam sozinhas. Ao lado delas, ainda sinto o cheiro do sangue que minha avó deixou escorrer do pescoço de uma galinha branca para fazer molho pardo. Também sinto o cheiro de flor de laranjeira que, agora adulto, levo em mim como colônia.

Na casa que não é minha, ouço "Ursinho Pimpão" do clarinete agora silencioso do meu avô, e também ouço o som do festival da cachaça e as fitas cassete da Rita Lee e do Trio Parada Dura. Também ouço "Aquela Flor que Você Me Deu", cantada por vovó, agora à capela.

De manhã, pela fresta abaixo da porta da cozinha que dá para varanda, sinto a neblina entrar até as 10 horas da manhã, quando o sol se impõe.

Pelo portãozinho do canto, escuro, estreito, úmido, ainda vejo passarem meus primos sujos de barro e meus tios cheirando a cachaça nos sábados de aleluia. Também vejo minha avó vestida de Papai Noel, meias brancas como se fossem luvas e uma máscara assustadora, esperando a luz voltar para sair e entrar pela porta da frente e agradar os netos mais novos. Daquela vez, a luz não voltou, mas teve Papai Noel mesmo assim.

Na casa que não é minha, mas é, vejo minha única tia bêbada perguntando se sei onde está a capa prateada que ela perdeu, e minha mãe contando histórias com um copo de campari na mão.

Na casa que não é minha tem a canção do beco escrita em papelão pregada num canto, e os nomes dos bisavós cravados na madeira, a data da estrela e a da cruz, noutro.

Hoje ela é pequena, e seria desconfortável se meu corpo não tivesse se moldado a ela à medida que crescia. Hoje, ela não ouve mais os passos do meu avô, nem do tio mais alto que morreu, nem dos bisavós, mas ela já ouviu, e é por isso que é minha, mesmo sem ser, e continuará sendo quando também não puder mais ouvir os meus.

Matheus de França Chagas, 35 anos, é servidor público e mineiro no exílio. Escreve sempre que pode.

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