Que imposto é esse

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Que imposto é esse - Eduardo Cucolo
Eduardo Cucolo
Descrição de chapéu
Alessandro Mendes Cardoso

Constituição tributária, um projeto vanguardista, mas bloqueado

Como exemplos de bloqueios podemos elencar a redução do caráter progressivo do IR e concentração da carga fiscal no consumo

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Alessandro Mendes Cardoso

Sócio do Rolim Goulart Cardoso Advogados. Doutor em Direito Público (PUC/MG), e Mestre em Direito Tributário (UFMG)

Nessa quinta-feira, 05/10, a Constituição Federal brasileira completa 35, como principal marco do processo de redemocratização que colocou fim a 21 anos de regime ditatorial (1964-1984).

No campo tributário, a Constituição de 1988, ao estruturar o sistema constitucional tributário, o fez considerando a sua vinculação ao objetivo da construção de um Estado Social que possa fazer o Brasil avançar na redução da enorme desigualdade social que o caracteriza historicamente.

Não por outro motivo, o texto constitucional é claro ao determinar que a estrutura de tributação deve ser centrada na capacidade contributiva, com os mais ricos contribuindo mais no esforço de distribuição da renda via financiamento dos serviços públicos de saúde, educação, previdência e assistência social, o que fica patente no avanço ao se determinar que o imposto de renda seja geral, universal e progressivo.

Trilha o mesmo caminho, ao prever a progressividade do IPTU, inclusive pelo não cumprimento da função social da propriedade, a progressividade do ITR visando desestimular a manutenção de propriedades improdutivas, além da reintrodução no sistema da tributação das heranças e doações e da instituição da competência para a instituição do imposto sobre grandes fortunas.

Homem de paletó azul em escritório com estante de livros ao fundo
Alessandro Mendes Cardoso, sócio do Rolim Goulart Cardoso Advogados - Divulgação

Consideramos que, no que se refere ao projeto de sistema tributário, a Constituição de 1988 foi vanguardista e trouxe relevantes avanços, ao vincular o sistema de arrecadação ao custeio dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, de construir uma sociedade livre, justa e solidária e de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Contudo, a implementação do projeto de um sistema tributário progressivo e desconcentrador de renda tem sido bloqueado sistematicamente pela legislação infraconstitucional.

A produção legislativa tributária do Congresso Nacional, nos últimos 35 anos, tem forte responsabilidade pela realidade do sistema tributário brasileiro ser caracterizado pela sua regressividade (concentrado na tributação do consumo em detrimento da renda), prodigalidade em desonerações, benefícios tributários setoriais (nem sempre vinculados aos necessários controles ex ante e ex post), subsídios via gastos públicos, alta complexidade normativa e no cumprimento de obrigações acessórias e o maior contencioso tributário do mundo.

Como exemplos de bloqueios à concretização do projeto constitucional tributário podemos elencar a redução do caráter progressivo do imposto de renda, a concentração da carga fiscal sobre o consumo (efeito concentrador) e contribuições sociais, e a forma como o Congresso Nacional majoritariamente conduz os temas tributárias, com a prevalência de proposições que tratam de medidas desonerativas e benefícios tributários, e o bloqueio do trâmite e da discussão de proposições que tratem de temas como a instituição do imposto sobre grandes fortunas.

Isso pode ser explicado pela dinâmica própria do presidencialismo de coalização, caracterizado pelo grande poder de agenda do Poder Executivo, a necessidade de construção de maiorias no Congresso Nacional via coalizões partidárias e a concentração de poderes políticos e regimentais nas lideranças partidárias e das Mesas Diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que geraram uma dinâmica específica no processo legislativo federal no período pós-promulgação da Constituição de 1988.

Também são contextos que contribuíram e contribuem para essa situação de bloqueio à efetiva implementação do projeto tributário constitucional:

a) A prevalência dos interesses arrecadatórios e imediatistas dos governos executivos, que vinculam a política tributária ao seu programa de governo e à sua linha ideológica;

b) A preponderância ou pelo menos relevante influência do raciocínio político baseado na ponderação de interesses com base no contexto da escolha racional, no qual a maioria dos parlamentares avaliam as proposições legislativas em face dos interesses da coalizão governamental de ocasião e nos ganhos e perdas políticas, no enredo do objetivo último de reeleição, e não em face da implementação do projeto de sistema tributário da Constituição Federal;

c) A avaliação com base na escolha racional, implicando que a produção legislativa tributária federal seja muito vinculada à concessão de benefícios tributários, regimes especiais tributários e programas de anistiais fiscais. Sendo que depois de instituído esse tipo de benesses é difícil e com custo político muito alto a sua revogação ou alteração;

d) No pressuposto de que a tributação é elemento central na disputa social pela distribuição da renda nacional, existe grande conveniência política de se "esconder" a tributação no custo de mercadorias e serviços (tax ilusions), tornando menos transparente o caráter regressivo do sistema tributário, com a alienação da maioria da população sobre a divisão do financiamento social do Estado e das possibilidades de redistribuição da riqueza nacional;

e) O déficit democrático do processo legislativo tributário federal, com o forte predomínio das lideranças partidárias e das Mesas Diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e a utilização comum dos regimes de urgência e urgência urgentíssima. O que inibe e, muitas vezes, inviabiliza totalmente o debate e a participação popular e de seus organismos de representação (sindicatos, órgãos de representação estudantil, organizações não governamentais) no debate das proposições tributárias;

f) A intensa movimentação e disputa dos entes federativos e dos mais diversos grupos de interesse, cada qual visando alterar o texto normativo segundo os seus próprios objetivos. Esse movimento em si não é contrário ao jogo democrático, mas tende a deturpar a racionalidade do processo legislativo ao expor que a norma tributária incorra em graves vícios de racionalidade sistêmica, teleológica e mesmo ética, com interesses específicos prevalecendo em face da coerência estrutural do sistema tributário.

Tal conjunto levou ao consenso a necessidade de alteração de um sistema tributário que, após a promulgação da CF/88, tornou-se excessivamente regressivo, complexo, litigioso, com grave déficit de racionalidade legislativa e dissociado do projeto constitucional. Mas o dissenso sobre qual o modelo de reforma, devido à dificuldade de se atender aos diversos interesses envolvidos, inviabilizou os projetos e tentativas anteriores no Congresso Nacional.

Agora, com a janela de oportunidade política e de consenso na sociedade, espera-se que finalmente haja maturidade política e dos diversos players sociais, para que se reforme o sistema de forma a torná-lo mais aderente aos pressupostos valorativos e principiológicos que caracterizam o sistema constitucional tributário da Constituição Federal de 1988.

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