Saúde Mental

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Saúde Mental - Sílvia Haidar
Sílvia Haidar
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João Carlos Martins conta como a distonia focal afeta a saúde mental

Pianista e maestro se prepara para volta ao Carnegie Hall, em Nova York

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São Paulo

João Carlos Martins não desiste da música. O pianista e maestro volta ao Carnegie Hall, em Nova York, 60 anos após sua primeira apresentação na casa de espetáculos.

Com luvas biônicas, desenvolvidas pelo designer Ubiratan Bizarro Costa, ele se prepara para o concerto que será no dia 19 de novembro.

Aos 82 anos e com sintomas de distonia focal desde os 18, o músico tem se reinventado há décadas por amor à profissão.

A doença é causada por um problema no sistema nervoso central que afeta os movimentos. No caso do pianista, a condição atinge as mãos. Os sintomas são contrações musculares involuntárias e espasmos, muitas vezes repetitivos, que provocam fortes dores.

Em artigo inédito, João Carlos conta sua luta contra a distonia e como essa disfunção prejudica a saúde mental.

Minha história como um pianista distônico

Por João Carlos Martins

Ter que abandonar o sonho de fazer música é a perspectiva mais aterrorizante que um músico pode enfrentar. E a mais trágica.

Isso quase aconteceu comigo várias vezes ao longo da minha carreira de 70 anos. Passei por 25 cirurgias, dezenas de tratamentos, diagnósticos contraditórios e duas lesões que mudaram minha vida. Mas nenhum dos obstáculos que cruzaram meu caminho poderia me forçar a deixar esse sonho vital.

Quando eu tinha apenas 18 anos —em 1958, apenas seis anos depois de fazer minha estreia profissional como pianista— comecei a sentir tremores involuntários em minha mão direita.

Demorou até 1982 para que a condição crônica que me afetava fosse diagnosticada como distonia focal. Esse complexo distúrbio de movimento causa estragos na vida de pelo menos 1% dos músicos profissionais, de acordo com o neurologista Alexandre Kaup.

Durante anos ninguém conseguia explicar o que estava acontecendo. Quando meus sintomas começaram, alguns médicos até sugeriram que talvez eu não estivesse confortável tocando em público —seria um problema psicológico.

A verdade era exatamente o oposto. Eu adorava tocar recitais e concertos ao vivo tanto quanto adorava gravar no estúdio. Meu respeito pelo público era intransigente.

Mesmo que isso significasse tocar com um aparelho de metal nos meus dedos, o que eu também tentei. O problema era agonizantemente físico. Perto do final de um concerto, notei gotas de sangue salpicando as teclas do piano. Mas eu lutei contra a dor até o último acorde.

Olhando para trás, não sei como consegui tocar mais de 1.000 recitais e concertos com grandes orquestras nos Estados Unidos, na Europa, na Ásia e na América Latina.

A dor em minhas mãos, às vezes, ficava quase insuportável. Mas a determinação de me comunicar com meu público me inspirou a continuar tocando.

O que também ajudou foi aprender a enganar meu cérebro. Afinal, é aí que se origina a falha neurológica que causa a distonia. Por muitos anos, os movimentos involuntários não me incomodavam por duas ou três horas após uma boa noite de sono.

Então, não importa para onde eu viajasse, descobri como usar isso a meu favor e organizava a minha agenda para me permitir dormir até 15 minutos antes de cada concerto.

Esse truque me deu a sensação de que estava tocando sempre às 7h, logo após acordar. Minha mão direita ficava espástica depois do concerto.

Mas esses mecanismos de enfrentamento nem sempre funcionavam. Eu teimosamente insisti em combinar a expressão emocional com o perfeccionismo da técnica. Isso me deixava satisfeito com apenas 70% das minhas performances. Não gostei de 15% delas. O resto eu cancelei.

Às vezes eu caí em depressão. Eu até tentei escapar da música completamente. Isso aconteceu em dois longos períodos, cada um com duração de sete anos. O objetivo era poder focar na minha saúde mental.

"Viver com a distonia do músico", como observa o neurologista Alexandre Kaup, envolve "uma mistura de frustração, dor, vergonha e luta" que muitas vezes resulta em uma carreira encurtada.

Mas esta doença não poderia destruir uma paixão que é tão essencial para mim quanto o ar ou a comida. Por mais que encontrasse maneiras de enganar meu cérebro, adaptei-me às circunstâncias mutáveis que enfrentava.

Uma das muitas cirurgias pelas quais passei tornou minha mão direita totalmente inútil. Então me concentrei no repertório apenas para a mão esquerda —até perder o uso dessa mão também, cerca de 20 anos atrás.

Mas eu não podia desistir. Então, como você vence uma batalha depois de parecer ter perdido a guerra? Encontrei um caminho: voltando minha atenção para a regência, montando minha própria orquestra e incentivando a geração jovem.

É com esse espírito que retorno ao Carnegie Hall, na cidade que foi minha casa por muitos anos. Toquei lá pela primeira vez há 60 anos. E foi no Carnegie que fiz uma das minhas apresentações mais memoráveis: o Primeiro Livro do Cravo Bem Temperado de Bach, num concerto de retorno em 1978, após a primeira das longas interrupções da minha carreira.

Estou compartilhando minha história com a esperança de que possa inspirar outras pessoas que lutam contra distonia e desafios semelhantes. Eu mesmo encontrei inspiração na minha amizade com o falecido Leon Fleisher —na minha opinião o maior pianista americano que já existiu. Sua bravura em lidar com a distonia focal tornou-se lendária.

Nós nos conhecemos em 1958. Ao longo dos anos, tentamos ajudar um ao outro trocando ideias sobre técnicas práticas e estratégias de dedilhado para combater o problema.

Os músicos Leon Fleisher e João Carlos Martins estão abraçados e um olha para o outro
Leon Fleisher (à esq.) e João Carlos Martins, em foto de arquivo do maestro - João Carlos Martins/Arquivo Pessoal

Juntamente com seu custo físico, a distonia pode afetar a saúde mental. Artistas em particular são suscetíveis por causa de seu perfeccionismo e da ansiedade que acompanham uma vida dedicada ao desempenho profissional.

O trabalho que está sendo feito internacionalmente por especialistas como Dévora Kestel, diretora de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS (Organização Mundial da Saúde), oferece um farol de esperança para melhorar nossa compreensão desse aspecto da distonia focal.

A longo prazo, estou convencido de que médicos e cientistas encontrarão soluções mais duradouras para a distonia focal. Mesmo com 82 anos, continuo jovem em espírito: minha própria carreira e lutas me ensinaram a esperar o inesperado.

Por exemplo, eu nunca poderia ter previsto que Ubiratan Bizarro Costa, um brilhante designer industrial, inventaria um par de luvas biônicas para mim.

Agora posso tocar algumas peças novamente depois de tantos anos graças a essa paliativa —para mim, milagrosa— solução.

Mesmo quando minhas mãos se foram completamente, a música sempre permaneceu no meu coração. E continuarei a mantê-la viva enquanto puder.

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