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O cientista e o 'inimigo do povo'

Peça de Ibsen encenada em SP traz embate entre ciência, política e negócios

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São Paulo
Ilustração com homens de jaleco branco em uma suposta manifestação do povo
Andres Sandoval/SoU_Ciência

Um médico da comunidade, sanitarista e cientista, descobre que as águas da estação balneária da cidade estão contaminadas. As amostras são analisadas nos microscópios da universidade, já que os micróbios não eram visíveis a olho nu. Frequentadores do balneário, em busca de saúde, estavam ficando doentes. O médico coleta a água e em sigilo envia para a universidade fazer as análises.

Com a evidência científica em mãos, pede que o alerta seja dado a todos e providências públicas sejam tomadas. Ele envia a notícia para ser publicada no jornal local, o que evitará que novos turistas se contaminem. O balneário, que é uma empresa privada S.A., deverá fazer novas obras para captar águas limpas noutro ponto e então reabrir as portas. O diagnóstico e a solução parecem corretos e exequíveis. Mas a posição pró-esclarecimento, favorável à saúde pública, e baseada em evidência científica irá sofrer um forte revés.

A peça de Henrik Ibsen, escrita há 140 anos, é assombrosamente atual. Em cartaz em São Paulo no Teatro Aliança Francesa nos últimos dois meses, a montagem dirigida por José Fernando de Azevedo, professor da ECA-USP, tem como protagonista um ator negro, Rogério Brito, que interpreta com paixão (e razão) o sanitarista Doutor Thomas Stockmann para os dias atuais – o que introduz ao texto de Ibsen uma nova dimensão de raça, tempo e lugar.

A leitura afrodiaspórica de "O inimigo do povo" não é total novidade, como explica José Fernando: esta foi "a última peça encenada pelo Teatro Experimental do Negro [dirigido por Abdias do Nascimento], em 1963", às vésperas do golpe militar.

O médico/cientista negro, ao qual os poderosos se lançarão contra, é o portador da liberdade de pensamento, do esclarecimento, da defesa da vida e da dignidade humana – contra os interesses dominantes. Personagem e ator que se entrelaçam com o Brasil atual, seja com a missão de médicos cubanos, seja com a ampliação de negros nos cursos de medicina, graças às políticas afirmativas e de acesso por cotas. Se a empatia com o protagonista aumenta, por ser negro, não há dúvida de que o discurso científico do sanitarista e o jaleco branco são raramente associados no Brasil a peles negras – o que produz uma dissonância de partida. As leituras de raça e gênero são diversas na montagem, com metade do elenco negra, incluindo um dos antagonistas e evitando maniqueísmos étnicos.

O médico é o protagonista imbuído da verdade, mas despreparado para entender o jogo de poder e interesses que o cercam, daí uma certa ingenuidade idealista que o torna um herói quixotesco diante das forças da ordem e dos negócios que farão frente à sua descoberta. No texto dramático, Ibsen não apenas faz o elogio à ciência, mas ao livre pensamento e à capacidade de defender causas e posições novas, levadas à frente por minorias e que ainda não foram compreendidas pelas multidões, quase sempre manipuladas pelos donos do poder, do dinheiro e da mídia.

O cientista negro é repreendido pelo prefeito e seu artigo no jornal é censurado. Ele sofre uma conspiração das forças do atraso, que reagem em defesa da ordem. O prefeito, o representante da pequena-burguesia, o dono de jornal e o jornalista e (ocultos) os acionistas do balneário, conseguem inverter a narrativa. Na versão deles, o médico sanitarista levaria a todos à miséria, fechando o balneário, afastando os turistas, acabando com empregos, arruinando a economia e a reputação da cidade. O prefeito antecipa que os custos das obras na nova captação de águas são altos e teriam que ser assumidos pelos contribuintes, pois os acionistas se negam a pagar por isso, e os donos dos curtumes, que contaminam as águas, não são levados à justiça.

A reação conservadora é rápida e atua em bloco: domina as notícias, recusa as evidências científicas (como acreditar no que "não se vê a olho nu"?), e trata o médico como louco – ao que ele paga com o preço do linchamento moral, apedrejamento de sua casa, demissão e despejo.

A montagem de José Fernando, no entanto, inverte o jogo, sem desrespeitar o texto original. Em uma das últimas cenas, Ibsen constrói uma assembleia, convocada pelo doutor Stockmann, uma vez que o jornal local e as associações de comerciantes não lhe dão voz. Ele consegue de um marinheiro amigo um galpão a beira do porto para convocar a população e falar a verdade. Ibsen imaginou a cena em palco, com atores formando a assembleia que vocifera, interrompe e ataca o médico. Mas na montagem brasileira, a assembleia passa a ser composta pelo próprio público da peça. Atores sentados no meio da plateia tentam seguir o texto de Ibsen, de linchamento moral do médico, mas o público de fato reage e o defende, contracenando e invertendo o resultado: a plateia no Aliança Francesa vota ao final pela verdade e em defesa do cientista negro. Não resta ao prefeito e ao presidente da associação de proprietários terem que manipular o resultado da votação, voltando a condenar o médico como "inimigo do povo", para que a peça possa seguir o texto original.

O momento, contudo, traz o aprendizado da plateia sobre o que vê e sua capacidade de se indignar, reagir e escolher o lado certo – que é derrotado no texto, mas não na vida. De algum modo, esse levante do público, não para aderir, mas para se insurgir contra o negacionismo e as forças do atraso, traz mais uma vez Ibsen para a atualidade, em um país conflagrado, governado por forças obscurantistas, e que exige que o curso do texto e da história sejam alterados. Afinal, como afirma Ibsen pela voz do seu protagonista: não é apenas de esgoto que se trata, mas do pântano ético e moral em que nos atolamos – e do qual precisamos sair.

A peça deve retornar em cartaz em breve. E o texto de Ibsen está disponível em publicações em português, relançado recentemente pela editora Carambaia. A arte segue iluminando a vida.

Não por acaso, o presidente vetou esta semana a renovação da Lei Aldir Blanc (cujo nome é homenagem ao músico falecido por Covid-19), que previa R$ 3 bilhões anuais para fomento à cultura nos próximos 5 anos. Quem será o verdadeiro "inimigo do povo"?

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