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Descrição de chapéu 60 anos do golpe

O fantasma da ditadura segue vivo

Universidades e institutos de pesquisa foram atacados na ditadura e novamente nos últimos anos

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São Paulo
imagem de um cadeado
Meyrele Nascimento/SoU_Ciência

Desde o início de abril, muitas atividades foram realizadas para lembrar os 60 anos do golpe militar no Brasil – e, também, para evitar que a história possa, um dia, se repetir. Os "legados" da ditadura são inúmeros e marcam nossa sociedade até hoje: o militarismo das polícias, a política de segurança como política de extermínio e o encarceramento em massa; as grandes obras e suas megaconstrutoras, que promoveram inúmeros casos de corrupção, impactos sociais, ambientais, remoções forçadas e mortes de trabalhadores (lembrando que o Brasil bateu recordes de acidentes de trabalho, em especial na construção civil); o genocídio indígena e ataque às suas reservas; a violência no campo, com grupos armados contra as ligas camponesas e seus atuais movimentos por reforma agrária; um certo patriotismo que só valoriza o que é estrangeiro, ataca seus próprios cidadãos e despreza nossas culturas e tradições; a manutenção do discurso demodê da Guerra Fria com a "ameaça comunista" permanente, hoje narrativa delirante - mas ainda eficaz para angariar apoiadores; a Caserna e as Escolas Militares, que ainda seguem guiadas por manuais de Guerra Fria e uma história imaginária e paralela do Brasil, ideológica e sem pesquisa factual; a desinformação geral que segue como regra, incluindo a guerra aos livros e a Paulo Freire, e o ataque às universidades, aos intelectuais e aos cientistas.

Na próxima terça-feira, dia 16 de abril, às 17h, o SoU_Ciência realizará uma apresentação no seu canal do YouTube (@SOUCIENCIA) para tratar deste tema e discutir, em especial, como a ditadura impactou as universidades e institutos de pesquisa neste período e suas reverberações até hoje. Para isso, teremos a participação de professores e pesquisadores eméritos que viveram esse período intensamente, além de uma apresentação sobre o trabalho da Comissão da Verdade da Unifesp e o que vivemos recentemente.

Não podemos esquecer desse período e devemos continuar clamando por justiça e reparação. Não apenas aos indivíduos, mas ao conjunto do sistema universitário brasileiro, já que toda a educação superior sofreu as consequências de um regime que censurou, perseguiu, prendeu, torturou, exilou e matou muitos professores e estudantes. A ditadura rasgou o projeto de reforma universitária em discussão no Brasil naqueles anos, que previa a maior participação dos estudantes nos colegiados, o fim das cátedras, o fortalecimento da conexão com os problemas do povo brasileiro e o desenvolvimento com soberania.

O regime destruiu a extensão universitária (tão forte no início dos anos 1960), fechou projetos universitários ousados e implantou um modelo importado de departamentos de pesquisa, com apoio da USAID, a agência norte-americana que tutelava diversos países, em especial na América Latina. Deu início aos grandes grupos privados de educação e a um modelo de educação-mercadoria, de qualidade rebaixada e acrítica - não à toa, já que as universidades públicas e institutos de pesquisas mais importantes de nosso país foram locais de grande resistência e combate ao autoritarismo e, por isso, sofreram perseguições.

Neste dia 16 de abril vamos lembrar o que ocorreu entre estudantes e professores que foram torturados e que tiveram suas vidas sequestradas por prisões sumárias e brutais, sem deixar de lado os assassinatos. Muitos que tiveram suas vidas marcadas para sempre. Certamente, devemos lembrar e trazer a verdade dos fatos, já que, ainda hoje, há distorções e até negações.

Importante relembrar o caso da UnB, quando professores foram cassados (o primeiro deles, o Prof. Ernani Fiori, avô de um dos autores deste artigo), resultando numa demissão em massa, com o rumo do projeto inovador de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro desviado e atrasado por muitos anos. Felizmente, anos mais tarde, a UnB recuperou este grande laço, mas existem marcas profundas e que precisam ser apresentadas, principalmente para as gerações posteriores e os jovens de hoje – que, muitas vezes, desconhecem o legado de uma grande universidade preservada e que resistiu a tempos sombrios.

Neste sentido, a Comissão Nacional da Verdade trouxe a possibilidade da criação de diversas comissões em locais diferentes, inclusive nas universidades. Foi o caso da Universidade Federal de São Paulo, que criou a sua Comissão da Verdade, resultando em um relatório com mais de 700 páginas. A universidade conheceu sua própria história, até então um tanto desconhecida, e teve a oportunidade de realizar outro importante aspecto do processo de memória e justiça, que é a reparação.

A principal delas se deu na concessão do título de Professor Emérito a Marcos Lindenberg, que foi Diretor da então Escola Paulista de Medicina, quando tentou criar a Universidade Federal de São Paulo, em 1963. Deposto do cargo e cassado logo no início de 1964, Lindenberg, assim como outros professores perseguidos, viveram as consequências da perda de cargo e títulos. Somente em 2015 pudemos, à frente da Unifesp, homenagear sua família e devolver o seu lugar de destaque entres os reitores da recriada Universidade Federal de São Paulo, em 1994.

O trabalho da Comissão da Verdade da Unifesp também foi fundamental para a criação do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), que, no início, contou com a importante colaboração de grupos como o EAAF, da Argentina, e com os familiares desaparecidos brasileiros. O CAAF também trabalhou para resolver a situação de impasse que havia em relação às ossadas da vala de Perus (em breve falaremos mais deste capítulo). Atualmente, o CAAF realiza estudos que lidam com as consequências da ditadura, inclusive na formação dos aparelhos que, hoje, promovem a repressão e violência de Estado, a perseguição e a censura por outros métodos. São heranças da ditadura estudadas por pesquisadores que buscam apresentar propostas e políticas para superá-las e contribuir com a construção da nossa democracia.

Os acontecimentos da ditadura estão presentes, também, na história recente, a partir dos métodos do período autoritário. As perseguições ocorridas após o impeachment de Dilma Rousseff e que se seguiram fortemente nos anos Bolsonaro tiveram como alvo intelectuais nas universidades e institutos, instalando um "lavajatismo" que tentou abalar as estruturas do Estado. Seguiram-se as perseguições a reitores e professores, por meio de diferentes torturas, especialmente a da difamação, com ataque às universidades e institutos de pesquisa - exatamente por serem locais de crítica e de resistência. Neste sentido, não podemos esquecer o brutal acontecimento com o Reitor Cancellier, levado ao suicídio e, posteriormente, considerado inocente, dada a ausência de provas das acusações.

E tudo isso deu no que deu, no que vivemos nos últimos anos. A ditadura não apenas marcou o conservadorismo, mas também o forte traço de fascismo à brasileira. A Nova República e nossa frágil democracia sempre estiveram sob o olhar vigilante e a agressão das estruturas de repressão - prontas a agir para atropelar o Estado Democrático de Direito, construído após décadas de luta. O golpismo segue vivo e forte, como estamos vendo por meio de inquéritos do MPF e do STF; através de operações da PF; de investigações a jornalistas, pesquisadores e militantes; do impeachment de Dilma, em 2016; da retirada forçada de Lula da eleição de 2018; das tentativas de cancelar a eleição de 2022; e, depois de Lula empossado, no 8 de janeiro de 2023. O fantasma da ditadura segue entre nós, assombrando o país que podemos ser.

Por um fio, e com muita luta, impedimos o aprofundamento do autoritarismo no Brasil. Caso contrário, estaríamos rumando para a situação de países como Hungria, Turquia, Rússia ou Índia, onde professores e estudantes têm sido perseguidos, silenciados, presos e exilados. O índice de liberdade acadêmica nesses e noutros países que transitaram de democracias (mesmo frágeis) para autocracias desabou repentinamente. As autocracias no poder silenciam as universidades e a voz dissidente que pode denunciá-los ao mundo a partir de pesquisa fundamentada.

Por isso, é preciso continuar a compreender as raízes e práticas do autoritarismo para poder melhor combatê-lo. Precisamos da verdade, justiça e reparação dos eventos passados para defender o presente e preservar o futuro das novas gerações. Sem isso, jamais curaremos as feridas ou teremos alguma segurança de que não mais se repita. As universidades e institutos de pesquisas tiveram (e continuarão tendo) um papel fundamental em nossa história e na construção de uma sociedade mais justa - sobretudo se atuarem juntos aos movimentos da sociedade para que seja barrado qualquer retrocesso.

Ditadura, nunca mais!

Assista à nossa mesa no canal do YouTube: @SOUCIENCIA

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