Thaís Nicoleti

Thaís Nicoleti - Thaís Nicoleti
Thaís Nicoleti

Língua portuguesa: uma herança maldita?

Debates sobre preconceito linguístico e legado eurocêntrico são recorrentes no meio acadêmico

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rua da Língua, corredor onde são projetados vídeos, no Museu da Língua Portuguesa, na Luz (centro de SP), - Eduardo Knapp/Folhapress

Há uns bons anos, o debate público sobre a língua trazia como novidade a noção de variante linguística, que, por si só, tornava obsoleta a velha noção de erro gramatical. O que poderia haver, em determinadas circunstâncias, era o desvio da norma-padrão, sendo esta uma das variedades da língua – notadamente a de maior prestígio social – entre outras também válidas.

No ano de 2011, houve grande polêmica na imprensa em torno de um livro adotado em um programa governamental de educação voltado para adultos porque, supostamente, sua autora estaria ensinando um "português errado", que passava ao largo das regras de concordância. Na verdade, uma frase como "Nós pega os peixe" (citada aqui de memória) aparecia no livro não como "modelo" ou novo cânone, mas como exemplar de determinada variante social.

Nessa variante, rechaçada pelas classes letradas, a estrutura sintática é mais sintética que a da norma-padrão: o pronome "nós" já assinala o sujeito, que não precisaria ser repetido na desinência verbal "-mos" de "pegamos", e o artigo "os" já assinala o plural, que não precisaria ser repetido na desinência de plural "-s" de "peixes". Em suma: "Nós pegamos os peixes" e "Nós pega os peixe" têm o mesmo grau de eficiência comunicativa, sendo variantes de estrato social (chamadas "variantes diastráticas").

Se, de um ponto de vista essencialmente gramatical, as duas construções são válidas, a sociedade se vê obrigada a aceitar que o ensino da norma-padrão é elitista, pois valoriza o registro da classe dominante. A discussão desloca-se, portanto, do terreno da gramática para o da sociologia.

Sendo a norma-padrão a norma dos estratos mais altos e mais bem escolarizados da sociedade, claro está que essas pessoas são os seus defensores naturais (ou assim se presume). Os estratos menos escolarizados, usuários de variantes de menor prestígio, por sua vez, dificilmente se engajam nesse debate, que é, afinal, acadêmico. A classe média, no entanto, é o estrato que parece mais preocupado com a questão do preconceito linguístico, decorrente dessa diferença de prestígio entre as variantes.

Que fazer, então, para eliminar o odioso preconceito linguístico? Foram (e têm sido) muitos os textos e livros publicados sob essa rubrica, mas, na prática, o que se via era uma atitude condescendente em relação às variantes de baixo prestígio e a continuação da adoção da norma-padrão como cânone nas escolas. O professor passou a levar a questão das variantes para a sala de aula, mas continuava a ensinar a norma-padrão, que é, afinal, a variante mais cultivada pelos escritores da tradição e, em razão de seus recursos, aparentemente mais apropriada para a escrita de textos filosóficos, científicos e jurídicos, entre outros.

Hoje, esse debate ganhou novos contornos. A norma-padrão passou do status de variante elitista, que deveria ser apreendida durante a vida escolar, ao de língua do colonizador, tida agora como um repositório ideológico eurocêntrico, que se impôs no Brasil mediante o apagamento de diferentes matrizes culturais. Estamos diante de um problema bem mais complexo.

É fato que o Brasil foi colonizado pelos portugueses, povo do qual herdamos a língua na qual nascemos, que, por isso mesmo, é a nossa língua. Por mais críticos que sejamos à violência do processo histórico, que incluiu o extermínio de populações indígenas e o emprego de mão de obra escrava, trazida de países da África, não vamos conseguir devolver a língua portuguesa aos outrora colonizadores nem mesmo poderemos mudar a história que nos trouxe até aqui, da qual somos, na realidade, resultado.

Placas em exposição temporária em 2021 no Museu da Língua Portuguesa, na Luz, centro de SP - Eduardo Knapp/Folhapress

Conquanto se fale muito no apagamento de importantes matrizes culturais, especialmente as dos povos indígenas e as dos africanos, suas marcas estão presentes no português do Brasil. A olho nu, estão no léxico comum e na toponímia (nomes de lugares, cidades, acidentes geográficos, rios etc.) e, mais que isso, pesquisadores têm buscado mostrar que o ritmo de nossa fala e diversas características fonéticas do nosso português deitam raízes na influência africana em solo brasileiro.

A língua tem o poder de absorver e refletir os jogos de forças que se travam na sociedade. Mais importante do que cascavilhar o dicionário em busca de expressões de conotação negativa "que devem evitadas" é empreender a luta concreta em defesa dos direitos de todos os segmentos oprimidos, porque a língua, necessariamente, vai refletir as conquistas reais e concretas de todos.

As listas de termos "incorretos" ou "ofensivos", recorrentes na internet, na maior parte das vezes, não têm fundamento científico, constituindo um manancial de etimologias falsas. Embora possam até ter um propósito bem-intencionado (de um ponto de vista moral), na prática, a adesão a essa revisão do comportamento linguístico não vai além da velha atitude condescendente.

Mesmo essa adesão, porém, ainda que bastante presente no ambiente universitário, é pouca coisa diante da discussão sobre "decolonização", a qual, no plano da língua, se corporifica, mais uma vez, na ojeriza à norma-padrão. A crítica, agora, parece subir de tom. Seu alvo não são mais as nossas "elites letradas" (as que aplicam as regras de concordância), mas a nossa herança cultural eurocêntrica. Que fazer? Abolir a norma-padrão? Queimar as gramáticas da língua portuguesa em praça pública?

Parece mais sensato deixar que a norma-padrão, que é uma norma de referência para a produção de textos escritos formais, vá sendo naturalmente alargada ou modificada, como, de resto, tem ocorrido na história. A ideia de que a diversidade deve substituir a unidade, pois esta seria falsa e opressiva enquanto ela seria real, leva-nos a imaginar, no futuro, um Estado das dimensões do Brasil como um território linguisticamente fragmentado. Essa questão, como se pode intuir, é política. Aguardemos.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.