Thaís Nicoleti

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Perdeu, mané

Ministro do STF mostra o que é ser poliglota na própria língua

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O ministro Luís Roberto Barroso em vídeo em que responde a manifestante em Nova York: 'Perdeu, mané, não amola' - Reprodução

"Perdeu, mané. Não amola." A frase ganhou publicidade nas redes sociais não exatamente por seu conteúdo e por sua forma, embora por isso também, mas, sobretudo por ter sido dita pelo juiz Luís Roberto Barroso, um dos ministros do Supremo Tribunal Federal, o STF, como resposta a um brasileiro que o interpelou nas ruas de Nova York.

O episódio nos interessa do ponto de vista da linguagem e da dinâmica social que a envolve. Não foram poucas as críticas ao ministro, que, dada a posição que ocupa, supostamente, não poderia ter perdido a paciência em público ou ainda, pelo mesmo motivo, não deveria ter usado esse registro linguístico. Houve até quem indagasse se "perdeu, mané" não é uma frase usada por assaltantes.

De fato, o termo "perdeu" é usado no "jargão" dos assaltantes como abordagem da vítima (como se dissessem: "não adianta reagir, você já perdeu"), mas, claramente, não foi nesse sentido que Barroso o empregou. Para compreender o que se passou, convém reproduzir o brevíssimo diálogo. Vejamos:

Homem desconhecido: "O senhor vai responder às Forças Armadas? O senhor vai deixar o código-fonte ser exposto? O Brasil precisa dessa resposta, ministro, com todo o respeito. Por favor, Barroso, responde pra gente".

Ministro: "Perdeu, mané. Não amola!".

Homem desconhecido: "É sério. Não faz isso, não, ministro".

O contexto deixa claro que o termo "perdeu", nesse caso, estava relacionado ao candidato que perdeu a eleição, ou seja, Jair Bolsonaro. Ao mencionar o código-fonte da urna eletrônica, o homem deixou subentendido que tem dúvidas quanto ao resultado da eleição, na qual o atual presidente saiu derrotado. Barroso quis dizer, portanto, que Bolsonaro perdeu a eleição e que é melhor aceitar o fato.

Quanto a "mané", a palavra é de uso geral, tanto que já é até dicionarizada. Segundo o Houaiss, "mané" (no registro informal, com sentido pejorativo) é um "indivíduo sem capacidade, pouco inteligente; bobo, paspalhão, tolo". A origem do termo é desconhecida, mas, por certo, faz referência a algum Manuel, nome tipicamente português. Se considerarmos as célebres "piadas de português", em que os lusitanos sempre fazem o papel de bobo, teremos alguma pista para investigar o nascedouro da palavra.

Por ora, no entanto, parece suficiente o acordo tácito entre os falantes da língua, segundo o qual "mané" é um tipo de ofensa, ainda que sem gravidade. É provável que o que mais tenha causado estranheza tenha sido ouvir da boca de um ministro do Supremo uma frase tão informal, o que, convenhamos, tem lá seu lado divertido.

No imaginário de muita gente, um ministro do STF jamais diria algo como "perdeu, mané", pois, nos autos, o registro linguístico costuma ser não só formal como rebuscado e até mesmo difícil de compreender.

Vejamos, por curiosidade, um exemplo de decisão do Supremo: "Inexiste, na situação em exame, teratologia ou flagrante ilegalidade a demandar a atuação precoce desta Suprema Corte, sobretudo para conceder a ordem nos termos perquiridos. O periculum libertatis restou suficientemente apresentado pelas instâncias ordinárias para justificar a imperiosidade da custódia cautelar, nos exatos limites do que foi decidido por esta Corte".

O trecho transcrito, lavrado no mais acabado estilo forense, com direito a latinismo e a escolha de palavras raras (como "teratologia" no lugar de "anomalia" etc.), exemplifica um registro peculiar ao universo jurídico brasileiro. Nessa esfera, na qual o juiz Barroso transita com desenvoltura, por óbvio, não caberia "perdeu, mané", mas isso não significa que o homem Luís Barroso fale nesse estilo ornamentado em todas as situações do seu dia. O mais provável é que assim se expresse apenas nos autos.

O episódio ilustra muito bem a afirmação do gramático e professor Evanildo Bechara, para quem o falante que domina bem o idioma é um "poliglota na própria língua". Barroso mostra ser capaz de se expressar em registros muito distintos, do mais erudito ao mais popular.

Convém ainda observar um traço do registro informal do português, relativo ao modo imperativo, que é usado tanto por Barroso como por seu interlocutor. O homem desconhecido diz: "Por favor, Barroso, responde pra gente", Barroso responde: "Não amola!", e o homem retruca: "Não faz isso, não, ministro".

Caso empregassem o imperativo na segunda pessoa do singular (tu), o diálogo seria este: "Por favor, Barroso, responde para a gente"; "Não [me] amoles!"; "Não faças isso, não, ministro". Se ambos optassem pelo tratamento "você/ Vossa Excelência" (de terceira pessoa), teríamos o seguinte: "Por favor, Barroso, responda para a gente"; "Não [me] amole!"; "Não faça isso, não, ministro".

O fato é que, no uso espontâneo/ informal da língua, o modo imperativo tem apresentado comportamento bem diverso daquele que herdamos da tradição. Isso não quer dizer, no entanto, que as formas regulares já tenham desaparecido. Importa distinguir as situações sociais de emprego, ou seja, ser o "poliglota" de que fala o professor Bechara.

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