Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.

Matthew Perry, a culpa não foi sua

Fico triste de perder um companheiro de luta; em seu livro, o ator traduziu o que é a prisão do alcoolismo e da adicção

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É difícil escrever sobre a perda de um amigo. No começo de junho, viajei a trabalho e na livraria do aeroporto me deparei com a biografia de Matthew Perry, o Chandler Bing, de "Friends", meu amigo de tantas horas que morreu aos 54. Hesitei um pouco antes de comprar porque o título anunciava "Amigos, amores e aquela coisa terrível"... Mas como me interesso muito por ele, decidi dar uma folheada no livro durante a viagem. Comecei a ler e só parei para respirar fundo e espiar a janelinha do avião com os olhos marejados. A senhora ao meu lado falou: nossa, como você lê rápido.

Naquela pausa, eu buscava um pouco de ar, tamanho o espelhamento e a tristeza que senti ao ler sobre a trajetória alcoolizada e repleta de drogas. Mas não podia fazer nada, nem conhecia pessoalmente esse meu amigo da TV. A impotência que experimentei deve ter sido parecida com aquela que muitas pessoas talvez sentissem diante das minhas dores.

O ator Matthew Perry, de 'Friends'
O ator Matthew Perry, de 'Friends', morto neste sábado (28) - Kevin Scanlon/The New York Times

Caramba, escrever uma biografia aos 50 e poucos anos soa como um prenúncio de que a vida está no fim. E no relato, era isso mesmo: ele disse mais de uma vez que já deveria estar morto. Além de me espantar com essa declaração, me dou conta de que seus últimos abusos foram muito próximos da escrita do livro, então a dor ainda deveria ser muito forte. À época do seriado na TV, eu estava longe de imaginar que ele estivesse passando por isso, e aposto que a multidão de fãs tampouco sabia.

As mancadas que ele deu com o elenco e a equipe toda, infinitas. Faltava em dia de gravação ou chegava embriagado, provocando um sentimento de estranheza entre os colegas. Certa vez uma das atrizes disse: Matthew, nós sabemos do seu problema com álcool. Como?, ele se surpreendeu. E a resposta foi rápida: nós sentimos o cheiro.

Taí outro superpoder que a doença confere. Assim como ele, eu achava que enganava as pessoas, que poderia beber e disfarçar. É IMPOSSÍVEL. Em altas quantidades, o álcool, mesmo se consumido no dia anterior, exala pelos poros. Não dá pra pessoa passar despercebida. Quando eu era desmascarada, ainda resistia em confessar. É um autoengano contínuo. Existe o mito de que vodca não deixa hálito. Transformei o mito em regra quando bebia em lugares inapropriados. Bobagem: álcool é álcool, e ele altera o comportamento e o cheiro.

Me dou conta do quanto a gente procura camuflar essa maldita doença. De como precisamos engolir as dores pra debaixo do tapete e tentar seguir adiante. Ainda mais hoje, com as redes sociais. Fico me perguntando quantos sorrisos e poses não escondem uma dor gigantesca. Provavelmente muita gente sente a mesma dor que o Matthew sentia na época do programa e nos dias que se seguiram à evolução da doença. Não é uma questão muito perceptível, por isso é dolorosa: é um terror solitário e silencioso.

Quem me vê na rua hoje não diz que tenho questões com o álcool, que já estive internada algumas vezes. Mas eu não esqueço. Todos os dias peço por mais um dia sem a bebida, faço a oração da serenidade. Agora mesmo fui procurar fotos minhas dos períodos mais críticos, e aparentemente não dá pra ver minha dor, meu sorriso tá lá, estampado. Dias que lembro terem sido quase insuportáveis ficaram registrados como dias triviais. Pelo menos é o que mostram as fotografias.

Uma das partes que mais me tocaram foi quando Matty (assim os amigos dele o chamavam) faz uma reflexão ao ver um frentista, ele num carro chique, último tipo e tudo o mais. Ele diz que trocaria de lugar com aquele homem num piscar de olhos, para sempre, "se isso mudasse quem eu sou, o jeito que sou, preso a esta roda de fogo". Aquele homem decerto não tem "um cérebro que quer matá-lo", deve dormir como um príncipe. "Eu daria tudo para não me sentir assim. Penso nisso o tempo todo."

Sei exatamente o que Matthew Perry diz nessa passagem. Quando meu alcoolismo atingiu o ápice, eu tinha um ótimo emprego, era reconhecida na área e financeiramente estava muito bem. Isso faz mais de 13 anos. Mas eu estava MUITO INFELIZ, queria muitas vezes trocar de lugar com a dona Sônia que cuidava do café. Lembro de ter pedido algumas vezes para ir tomar café na casa dela, perguntar se ela não queria me adotar para eu poder comer o arroz com feijão que ela fazia para os filhos, e dormir longe de tudo.

O dinheiro não vale absolutamente nada quando você perde o poder de escolha. Não é uma questão de falta de vontade, é uma questão de falência total dos sentidos. Eu estava fora da realidade, assim como Matthew esteve durante grande parte da vida. Bem no começo do livro ele está numa clínica nos Alpes suíços, se não me engano (não consigo conferir, emprestei meu exemplar), com todas as regalias que cabem ao milionário que ele era. Logo aí veio meu primeiro incômodo: ele tinha um mordomo na reabilitação! Na minha opinião, para se tratar é preciso afastar o prestígio e o dinheiro. Eu quase que sou a favor de mudar radicalmente para uma vida perto da natureza, trabalhando com hortas e tal, em harmonia com o meio. Zerar o cérebro.

Ele tentou muito, eu mesma conheço muita gente que tenta com afinco viver dias de paz. É difícil, eu quase me dei por perdida muitas vezes. Sinceramente, não me importa a causa de sua morte, mas sim a empatia que ele provoca com o livro, além dos relatos de casos amorosos (essa parte é sempre boa de ler, mesmo que os casos sejam meio desastrados...). Me emociono vendo a série e sei o quanto esse entretenimento ajuda muitas pessoas a atenuar situações críticas. Tenho uma amiga que numa fase pós-AVC só conseguia ver "Friends", e dava muitas risadas com a série.

Fico emocionada e triste de perder um companheiro de luta. Ele ficou ainda mais meu amigo depois do livro, uma tradução perfeita do que é a prisão do alcoolismo e da adicção. É muita luta, muito sofrimento. Espero que com seu livro, com sua paixão pela vida, apesar de tantos tropeços, Matthew mostre para as pessoas que fama, sucesso, dinheiro, relacionamentos bons muitas vezes não servem de nada para quem é alcoólatra. A dor deita junto no travesseiro e acorda junto com a luz da manhã. O bem-estar de dentro é que salva, e é nele que venho achando meu lugar nesta vida.

Deixo aqui minha despedida a esse amigo tão distante e tão próximo. Matty, obrigada por tudo. A culpa não foi sua. Espero que esteja em paz.

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