Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
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Andrade, o personagem alcoólatra de 'Terra e Paixão', é um espelho

Assim como na ficção, preciso aceitar o passado e viver o presente da melhor forma que consigo

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Faz tempo que quero escrever sobre o Andrade, personagem de Ângelo Antônio na novela "Terra e Paixão", da TV Globo. Ele é um alcoólatra em recuperação, mas no começo estava na ativa e, além da questão do alcoolismo, tinha o caráter duvidoso e era violento com a mulher. Eu já fui mais noveleira, mas ainda hoje gosto de me esquecer um pouco de tudo para acompanhar a trama, torcer pelos personagens e conhecer novos atores. Andrade me despertava raiva. Achei que fosse pelo coquetel do alcoolismo misturado a outros temas sensíveis.

Ah, não, que pena não focarem na doença, comentei com a Tuca, aquela minha amiga que foi para Salvador comigo. Assistimos juntas a novela, cada uma à sua casa, e comentamos os capítulos por mensagens. Falamos do Andrade, e ela insistia: escreva sobre isso. No começo eu não quis, ia meter o pau. Puxa, será que um canal de comunicação tão importante não poderia ter mais sensibilidade pra falar desse assunto? Precisava misturar tantos problemas junto com o alcoolismo? A raiva só crescia, senti ódio, vontade de escrever para os responsáveis e dizer o quão desastrosos eles estavam sendo.

Andrade (Ângelo Antônio) em cena de 'Terra e Paixão' - João Miguel Júnior/Globo

Opa, mas aí me dei conta de uma questãozinha bem delicada que atrapalha demais os alcoólatras: o ego. Se deixar, eu começo a pontificar sobre tudo. Acho sempre que do meu jeito seria melhor. Isso também faz parte da doença. Penso que na pior fase me isolei tanto que só enxergava o meu ponto de vista a respeito de tudo, muitas vezes distorcido da realidade. Não ouvia ninguém, a não ser a bebida. Depois aprendi que sou apenas mais uma alcoólatra em recuperação e que tenho muito a aprender com os outros.

Apesar da minha indignação, insisti seguindo a novela pra ver onde tudo aquilo ia parar. E o Andrade foi se dando mal. As covardias que cometia contra a mulher (Débora Falabella) chegaram a tal ponto que ele foi expulso de casa. Há muitos cartazes em salas dos Alcoólicos Anônimos com os dizeres: Tem uma hora que chega! Pois é, até as pessoas mais compreensivas e que mais amam o doente cansam. E o próprio doente também cansa de si.

Enquanto casado, ele flertava com a cunhada Aneli (Tatá Werneck), que ficava desconcertada e desesperada porque sofria pela irmã. O drama foi crescendo e eu fui me identificando com o Andrade. Não que eu tenha sido uma pessoa violenta no meu alcoolismo ativo, mas eu era capaz de ser muito inadequada, de um jeito que jamais seria em sã consciência. A doença crescia de tal forma que não era só depois que eu bebia que eu fazia bobagem.

Eu precisava inventar um personagem para fugir de todas as besteiras que tinha cometido e ia me atrapalhando cada vez mais, enganando as pessoas que eu mais amava, manipulando. Minha irmã falava que eu deveria ser atriz, tantas foram as cenas que aprontei para conseguir beber. Eu mentia como quem respira. Então me dei conta do quanto eu e o Andrade somos parecidos. Cometíamos atrocidades parecidas porque somos alcoólatras.

Nesse momento da novela ele está em recuperação, frequenta grupos de apoio. Teve um dia em que eu chorei torcendo para que ele não recaísse no momento em que viu a ex-mulher com o atual namorado. Foi por pouco, ele quase virou a bebida goela abaixo.

Essa doença me fez perder muitas coisas. Trabalhos, amigos, relacionamentos amorosos, dignidade. E o meu maior medo, quando a emoção fica atrapalhada, é a recaída, claro.

Assim como o Andrade, eu fiquei muito sozinha. Ninguém mais queria morar comigo e aguentar minhas bebedeiras, tampouco minhas tentativas de me manter longe da bebida. Eu perdi um casamento e às vezes olho para a vida do meu ex, que hoje está casado e com filhos. Daí me vem o pensamento: eu poderia ter trilhado outro caminho. Mas isso é ilusão, eu estava doente, eu criava espinhos para que ninguém chegasse perto. Não foi minha culpa, preciso me perdoar. É preciso esquecer os prejuízos de todas as naturezas.

Outro dia, teve um capítulo com o Andrade se desculpando com a ex-cunhada. Isso faz parte da recuperação. É sugerido que façamos uma lista das pessoas que prejudicamos e, se possível, que procuremos entrar em contato com cada uma delas para tentar amenizar a dor que ficou das situações catastróficas. Muitas vezes conseguimos uma boa conversa e as pessoas entendem, mas outras não querem nem te olhar. A ex-cunhada do Andrade, Aneli, não o perdoou, pelo menos nesse primeiro momento. Isso já aconteceu comigo. Tentei conversar para fazer reparação, mas uma pessoa não quis me ver de jeito nenhum.

Então, assim como o Andrade, preciso aceitar o passado e viver o presente da melhor forma que consigo. Agradeço muito o que vou reconquistando aos poucos. Hoje eu mudo de opinião, levo em conta o ponto de vista dos outros. Isso faz toda diferença. Sou fã do trabalho que fizeram com o Andrade, pela trajetória e coragem que ele teve de recomeçar a vida do zero, igualzinho a mim. Deixo meu abraço forte à equipe desse núcleo da novela, responsáveis pela criação desse personagem que encarna uma questão tão sensível. Andrade é um espelho. Não só para mim, mas para todos que sofrem dessa doença.

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