Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
Descrição de chapéu saúde mental

O álcool me ajudou a controlar medos, e nesse ledo engano me afundei

É preciso estimular crianças e pessoas que se isolam a falar de si, pois a conversa é curativa; os segredos é que são perigosos

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Carrego comigo um medo muito antigo. Uma sensação estranha de dor e angústia sempre que o chão começa a tremer. Sabe aquelas avenidas grandes que trepidam quando um ônibus ou caminhão passam? Tenho pânico. Lembro de quando era muito pequena e logo depois da tremedeira o coração acelerava, a mão suava, eu sentia calafrios. Ficava com uma sensação horrível. Pensava que o chão ia abrir e eu sobraria sozinha em um buraco negro.

Nunca falei disso para ninguém, mas fazia algumas perguntas quando passava por alguma trepidação para ver se alguém tinha sentido algo parecido. Aparentemente eu era a única. O silêncio de criança foi crescendo, virando um segredo. O que pensariam de mim? Então a dor, a angústia e o silêncio foram transformando aquela situação de pânico numa coisa muito maior. Ensaiei dizer que estava morrendo. No início as pessoas se preocuparam, mas na terceira ou quarta vez elas tinham entendido que não era bem aquilo. Minha avó dizia: Alice, não inventa.

"Eu sou tão perigoso quanto meus segredos", diz J. toda vez que dá um depoimento na sala de Alcoólicos Anônimos. Ele é um senhor de 80 anos, possui um carisma gigantesco e me ajuda muito na minha recuperação. Parar de beber, como já disse, foi fácil. Difícil mesmo era não voltar ao copo. Atribuo a dificuldade aos pensamentos solitários que eu não botava para fora. Era difícil tratar de alguma coisa que eu mesma não assumia e não conseguia verbalizar. Passei a experimentar com frequência a mesma sensação de criança solitária que não sabe nomear a dor. O problema, hoje me dou conta, não era o medo em si, o pavor… A grande questão foi não saber contar direito o que me levava a chorar e a dizer que ia morrer.

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'Comecei a ter medo da sensação do medo. E vivia em pleno estado de alerta' - Catarina Pignato

Viver em sobriedade é me reconectar com esses medos genuínos e aprender a lidar com eles. No meu caso, a escuta em sala de AA foi fundamental. Foi com ela que encontrei inúmeras histórias parecidas com a minha. Pode ser coincidência, mas muitos alcoólicos tiveram sérias questões na infância e não souberam lidar com aquilo. Com isso não quero dizer que a culpa do meu alcoolismo foi da negligência das pessoas que me cuidavam, mas o que aconteceu, acredito, foi que meus segredos infantis foram sendo cultivados e alimentados com muita seiva. E como eu não contava para ninguém, eles se tornavam verdadeiros e insuportáveis.

Na adolescência, tomei remédios alopatas para conseguir fazer coisas normais da minha idade. Antes, minha família tentou de tudo: homeopatia, retiros espirituais, conexão com a natureza, rezas as mais diversas, simpatias, massagens, terapia, reiki… Nada adiantava. A resistência, por parte da minha família, para ceder à medicação com ansiolíticos foi grande. Minha mãe não queria que eu me rendesse a isso, mas por fim entendemos que ou era isso ou eu continuaria não querendo sair de casa, nem ficar longe da minha mãe.

Quando minha ansiedade crônica foi relativamente domada, voltei a me socializar. Mas sempre com a sensação de que eu tinha alguma coisa que ninguém mais tinha. Que o que eu sentia, mesmo medicada, me botava num lugar único. Além do quê, na época em que comecei a tomar remédios, eu inventava para minhas amigas que era uma vitamina que meu corpo não produzia. Algumas nem questionavam, outras se contentavam com aquelas explicações. Mas de vez em quando alguém estranhava e queria saber mais. E contava aos pais, que por sua vez vinham conversar comigo. Era um processo doloroso. Eu nunca sabia explicar o que eu tinha.

Não era mais apenas quando o chão tremia que eu ficava mal: comecei a ter medo da sensação do medo. E vivia em pleno estado de alerta. Era incapaz de relaxar, mesmo com remédio. Faltava verbalizar, suponho. E olha que fiz muitas terapias, mas era difícil pôr em palavras a razão pela qual eu estava em tal estado de alerta. O medo original não tinha sido abordado e foi se acumulando em dor, em angústia. Achei por fim um estimulante para eu me socializar e esquecer os medos. O álcool. Aquilo agia como um flit paralisante e me fazia viver.

Consegui, com o álcool, controlar todos esses medos. E minha adolescência se tornou possível. Entrei na faculdade e meus medos estavam silenciados. Tinha achado a fórmula para nunca mais ter aqueles sentimentos. E foi nesse ledo engano que eu me afundei. Vivi dos 20 aos 30 anos me anestesiando como se não houvesse amanhã. Nada mais tremeu, fui morar sozinha, mas inconscientemente não conseguia me sentir em casa.

A conversa é curativa. É preciso estimular as crianças e as pessoas que se isolam a falar de si. Sentir medos, passar por situações desesperadoras é horrível, mas é humano. Não tem nada de especial. E é nesse lugar de dor coletiva que a minha dor individual se torna mais uma. Hoje eu continuo com meus medos, principalmente porque estou morando ao lado de um prédio em construção. Meu chão vive tremendo, mas eu nunca mais me senti só. Os segredos são perigosos.

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