Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Estudo brasileiro sugere que LSD pode reativar cognição

Psicodélico aciona via bioquímica envolvida em sinapses e envelhecimento mental

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São Paulo
Imagem do documentário  “A Maior Viagem – Uma Aventura Psicodélica”, na Netflix
Imagem do documentário "A Maior Viagem, Uma Aventura Psicodélica" - Reprodução

A pesquisa nacional dá nova contribuição para o renascimento da ciência psicodélica no século 21, agora com LSD. Estudo de três universidades públicas sugere que a dietilamida do ácido lisérgico, antiga vedete da psiquiatria hoje meio esquecida, deixa ratos e humanos mais espertos e pode render pistas sobre o que ocorre nos cérebros de idosos.

O artigo "Efeitos Nootrópicos de LSD: Evidências Comportamentais, Moleculares e Computacionais" saiu no periódico Experimental Neurology. Como adianta o título, o estudo foi além de observar o desempenho cognitivo de roedores e membros de nossa espécie, agregando dados bioquímicos e um modelo computacional para explicá-lo.

Os autores principais são Sidarta Ribeiro e César Rennó-Costa, do Instituto do Cérebro da UFRN, ao lado de Steven Rehen, da UFRJ, e Luis Fernando Tófoli e Daniel Martins-de-Souza, da Unicamp. Participaram ainda vários outros pesquisadores dessas universidades, como Isis Ornelas e Felipe Cini, além de Encarni Marcos, do Instituto de Neurociências de Alicante, na Espanha.

Neurocientista Sidarta Ribeiro participa da Flip 2019, em Paraty (RJ)
Neurocientista Sidarta Ribeiro participa da Flip 2019, em Paraty (RJ) - Eduardo Anizelli/ Folhapress,

O termo "nootrópico" vem da palavra grega para intelecto e se refere a substâncias tidas como capazes de aguçar a cognição, em funções como criatividade e memória. É a hipótese por trás do uso de LSD conhecido como microdosagem, ingestão de quantidades que não deflagram uma viagem lisérgica e ganharam fama de turbinar o desempenho mental.

Muita gente não sabe que, até a proibição nos anos 1960/70, LSD foi objeto de estudos e uso clínico no tratamento de abuso de álcool e na chamada terapia psicolítica. Na atual renascença, perdeu protagonismo na pesquisa para psilocibina (cogumelos) e MDMA (base do ecstasy) e até para a DMT da ayahuasca.

O largo uso recreativo do "doce", como é conhecido na cena noturna, e a prática da microdosagem justificariam mais atenção da ciência psicodélica, mas o estigma é forte. Não tanto para esse grupo brasileiro e para a condessa britânica Amanda Feilding, que manteve a chama acesa em sua Fundação Beckley e também figura como co-autora do artigo.

Não é de agora a noção de que o LSD possa atuar como um tipo de vitamina para o cérebro. O pessoal da UFRN, UFRJ e Unicamp decidiu testá-la com recurso a dois tipos organismos, um dotado de consciência (humanos), que pode ser alterada pelo psicodélico, e outro não (ratos).

No primeiro caso, vários testes cognitivos foram aplicados pela pesquisadora alemã radicada no Brasil Isabel Wießner. Para sua tese de doutorado na Unicamp, ela submeteu 25 voluntários (9 mulheres e 16 homens) a duas sessões experimentais, uma com dose mediana de LSD (50 mcg) e outra com placebo, para comparar seu desempenho em tarefas como um jogo de memória com pares de figuras e um desenho que deveria ser reproduzido após certo intervalo.

"Pelo que sabemos, este é o primeiro estudo a mostrar que LSD melhora a memória subaguda em humanos", destaca o artigo.

Os 76 ratos tratados com LSD, por sua vez, enfrentaram no laboratório de Ribeiro na UFRN um teste de preferência por objetos novos, como arranjos de peças de lego com algumas arestas a mais que aqueles com os quais estavam familiarizados. Neste caso, verifica-se a permanência da memória de objetos conhecidos e a motivação para investigar novidades.

Além desses organismos e seus comportamentos, a equipe de Rehen na UFRJ investigou o efeito bioquímico do LSD em minicérebros, ou, como preferem os especialistas, organoides cerebrais. São esferas de células neurais cultivadas por 45 dias a partir de células-tronco criadas com a manipulação de células obtidas da urina humana.

Esses aglomerados celulares se diferenciam a ponto de desenvolver estruturas similares a um diminuto sistema nervoso. Depois de banhados por 24 horas com LSD, eles foram dissolvidos e tiveram suas proteínas analisadas de modo exaustivo, para comparação com organoides de controle, que não haviam recebido o ácido.

Um total de 3.448 proteínas foram identificadas nos dois grupos, das quais 234 (6,8%) com expressão significativamente alterada pelo LSD. Ou seja, os minicérebros tratados com o psicodélico as produziram em quantidades diversas do lote de controle, muitas vezes maiores.

A análise revelou forte influência sobre processos como direcionamento de axônios, reciclagem sináptica e depressão de longo prazo (nada a ver com o transtorno mental), atividades celulares que apontam claramente para reorganização de sinapses. Em outras palavras, para neuroplasticidade, a formação de novas conexões neurais que estão na base da fixação de memórias e do aprendizado.

Minicérebros corados em vermelho demarcam a presença de proteína (SYP) importante na formação de sinapses
Minicérebros corados em vermelho demarcam a presença de proteína (SYP) importante na formação de sinapses - Divulgação

"Pudemos demonstrar conclusivamente que a administração prévia de LSD aumenta a plasticidade neural nos organoides de neurônios humanos, aumenta a preferência por novos objetos em ratos e melhora a memória visuo-espacial em humanos", resume Ribeiro. "Esses efeitos são significativos e substanciais."

Há mais. A pedido de revisores do artigo científico, o grupo agregou modelos computacionais que simularam o efeito da substância em redes neurais e mostraram que a plasticidade neural induzida pelo LSD explica satisfatoriamente os ganhos cognitivos em ratos e humanos.

Essas quatro linhas de evidências enfim possibilitaram, após três anos de tentativas, a publicação do trabalho num periódico respeitado (Experimental Neurology tem fator de impacto 5,62, quer dizer, cada artigo ali editado recebe em média 5,62 citações na literatura científica).

O trabalho já havia sido apresentado publicamente em 2019, na forma de pre-print, no repositório de acesso aberto bioRxiv, como noticiou a Folha. Ainda sem dados do experimento com humanos e sem o modelo computacional, foi submetido a oito revistas, que terminaram por recusá-lo. Já com as partes novas, foram quatro submissões até a aceitação.

"Pela importância do tema e pelo amplo escopo do estudo, tentamos publicar o artigo nas revistas científicas com máximo impacto internacional, como Science e Nature", conta Ribeiro. "Esse processo é sabidamente muito competitivo, e por isso ficamos bastante satisfeitos com a publicação na Experimental Neurology, que tem muito prestígio, tradição e capilaridade no campo biomédico."

O pesquisador deu entrevista por correio eletrônico no interior do estado de Nova York (EUA), onde faria palestras sobre sonhos, na terça e na quarta-feira (2 e 3), na Instituição Chautauqua, que fica na localidade de mesmo nome. A edição americana de seu livro "O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho" motivou o convite.

O laboratório na UFRN está explorando ainda a interação entre LSD e ambiente enriquecido para ratos, a fim de verificar se tal combinação resultaria em resultados cognitivos tão bons em animais idosos quanto os observados em animais adultos e jovens. Retoma-se, assim, uma das motivações iniciais da pesquisa: investigar se o psicodélico poderia contribuir para o resgate cognitivo de mentes idosas.

"Os resultados que já temos indicam que sim", adianta o neurocientista (além disso, uma das vias bioquímicas afetadas pelo LSD é a mTOR, como mostra o artigo, reconhecidamente envolvida em plasticidade, memória, envelhecimento e demência). Ribeiro explica que essa parte ficou fora do artigo porque havia número excessivo de fêmeas na amostra de roedores, o que poderia distorcer achados.

"Estamos nos preparando para iniciar um estudo de acompanhamento por toda a vida dos roedores para testar os efeitos e interações de administração regular de LSD por toda a vida, a cada 15 dias, e exposição ao ambiente enriquecido", antecipa. "O tema dos psicodélicos cresceu bastante no meu laboratório nos últimos cinco anos."

Sapo-do-rio-colorado (Bufo alvarius ou Incilius alvarius), do qual se obtém o psicodélico 5-MeO-DMT (Holger Krisp/Creative Commons)
Sapo-do-rio-colorado (Bufo alvarius ou Incilius alvarius), do qual se obtém o psicodélico 5-MeO-DMT (Holger Krisp/Creative Commons) - Holger Krisp/Creative Commons

Seu grupo tem um estudo em fase de finalização sobre os efeitos eletrofisiológicos no hipocampo e no córtex de ratos usando LSD e 5-MeO-DMT (substância originalmente extraída de sapos e aparentada com a DMT da ayahuasca), base da tese de doutorado da ex-aluna Annie da Costa Souza. Ele aponta que existem semelhanças entre os padrões eletrofisiológicos induzidos por psicodélicos e aqueles observados durante o sono.

"Sob o efeito dos psicodélicos, os animais estão despertos, se movimentando, mas o cérebro deles está dormindo, sob certo ponto de vista", resume Ribeiro.

Ratos podem não ter consciência nem transtornos mentais, como os humanos, mas pelo visto partilham conosco a capacidade de caminhar pelo mundo, com os psicodélicos, percebendo-o de um modo diferente. Uma boa maneira de aprender e de descortinar novas perspectivas, qualquer que seja o organismo.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série A Ressurreição da Jurema:

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Sempre cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.​

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