Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Empresa abre mão de patente contra uso tradicional de mescalina

Journey Colab cria fundo de apoio para indígenas que usam peiote

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São Paulo
Desenho com pílulas coloridas sobre fundo preto
Ilustração de Raphael Egel - - @liveenlightenment

A questão da propriedade intelectual (patentes) e da reciprocidade com comunidades tradicionais no renascimento psicodélico sempre foi espinhoso. Um tanto de criatividade e coragem, porém, pode fazer a controvérsia avançar, como vem tentando a empresa Journey Colab com seu "compromisso de patente" (patent pledge and statement).

Fundada em 2020, a Journey desenvolve uma mescalina sintética para testar como tratamento para transtorno de uso de álcool (alcoolismo). Batizou o composto de JOUR-5700. Como outras companhias da área, incluiu a propriedade intelectual em seu plano de negócios, mas não sem antes fazer uma consulta a várias partes interessadas, incluindo indígenas.

Substâncias como mescalina (peiote), psilocibina (cogumelos) e dimetiltriptamina (a DMT da ayahuasca e da jurema-preta) são usadas há séculos ou milênios por povos indígenas. Por princípio, isso impediria falar de inovação tecnológica que mereça privilégio patentário, exclusividade de direitos sobre a alegada invenção.

Após o processo de consulta, a empresa publicou um "documento branco" (white paper) em que assume uma série de compromissos sobre patentes, equidade e reconhecimento do papel de comunidades originárias com tradição no uso desses recursos medicinais da natureza. Ali se compromete a estabelecer um Fundo de Reciprocidade reservando 10% do capital inicial e de receitas para apoiar esses povos e iniciativas que ampliem o acesso às "plantas de poder".

"Nossa intenção é nunca aplicar nossas patentes sobre mescalina contra o uso não comercial da mescalina derivada naturalmente ou de plantas contendo mescalina, ou contra certas práticas cerimoniais e tradicionais, incluindo e em particular o uso indígena do peiote", reza o compromisso.

"Mais ainda, nossa intenção é que todos os futuros detentores de patentes sejam vinculados da mesma maneira." Em seguida, a Journey declara que a promessa é legalmente vinculante e irrevogável, incluindo qualquer parceiro ou licenciado.

A firma decidiu buscar uma abordagem de desenvolvimento isenta de risco pedindo o consentimento de comunidades que usam compostos psicodélicos naturais. Acredita que o sucesso da Journey por essa via criará enorme valor para seus acionistas, aí incluídos as comunidades indígenas, por meio do fundo.

Até a publicação do compromisso, a empresa havia levantado US$ 15,7 milhões (R$ 83 milhões) de investidores. O fundo também é irrevogável, mesmo por futuros proprietários.

"A Journey Colab acredita fortemente que uma produção totalmente sintética de mescalina, que evite por completo o uso dos cactos peiote e San Pedro, ou qualquer outra planta em que a mescalina ocorra naturalmente tanto respeita preocupações culturais e cológicas quanto abre o caminho a uma fonte sustentável para o mercado clínico."

O Fundo de Reciprocidade Journey será administrado de maneira independente por um comitê de gestão, separado do corpo de executivos da companhia. Os membros da comissão serão preferencialmente de origem indígena, e a empresa se compromete a incluir representantes de etnias também na gestão corporativa, mas essa representação só será definida quando houver recursos disponíveis para repasse.

A Journey afirma que a iniciativa é a primeira do gênero e que decorreu de ter montado uma equipe diversificada, que entende a importância potencial dessas terapias e também de compartilhar valor com as comunidades impactadas e marginalizadas. Admite, por fim, que isso poderá ser um empecilho para potenciais parceiros.

"Desenvolver uma estrutura corporativa que desafie o status quo não é fácil. A Journey Colab precisa de aliados e investidores alinhados com a missão, que entendam o capital como ferramenta para facilitar curas. (...) A experiência da Journey Colab demonstra que o modo como se constrói algo é tão importante quanto aquilo que se está construindo."

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

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