Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Da bicicleta mística à metafísica pedestre da mudança de consciência

Filosofia, mais que religião, vai iluminar caminho psicodélico, defende Peter Sjöstedt-Hughes

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Desenho de montanha verde com lua em céu azul e sol em céu vermelho, com pessoa nua em branco montada em bicicleta preta
Ilustração tradicional do Dia da Bicicleta, 19 de abril, data da primeira viagem lisérgica por Albert Hofmann - Reprodução

Hoje, 19 de abril, é o Dia da Bicicleta comemorado por psiconautas no mundo inteiro. Celebra-se nesta data a primeira viagem lisérgica intencional, realizada pelo suíço Albert Hofmann em 1943 com o LSD que havia criado cinco anos antes.

Que seja uma bicicleta o veículo da celebração, e não motocicleta, charrete ou automóvel, tem razão fortuita: após ingerir 250 microgramas do ácido e experimentar intensa transformação mental, o químico deixou o laboratório na empresa farmacêutica Sandoz e foi pedalando para casa.

A imagem de duas rodas vem a calhar para o assunto de hoje. As maneiras de explicar a experiência psicodélica subjetiva costumam girar em torno de dois eixos, a ciência e a mística, mas Peter Sjöstedt-Hughes, da Universidade de Exeter no Reino Unido, propõe que o entendimento das viagens ficará mais seguro e benéfico se apoiado numa terceira roda –a metafísica.

Três círculos entrelacados com as palavras "experiência psicodélica", "metafísica" e "misticismo"
Diagrama da "tristinção" empregada por Peter Sjöstedt-Hughes - Reprodução

Para o naturalismo na base da pesquisa psicodélica, que ressurge após cinco décadas de proibicionismo, toda mudança na cognição e na consciência ocasionada por compostos como LSD, mescalina, psilocibina (de cogumelos) e dimetiltriptamina (DMT, da ayahuasca) se explicaria pelos processos bioquímicos que tais substâncias desencadeiam no cérebro.

Desse ponto de vista, realidade é só o que percebemos pelos sentidos. Visões de outros mundos e entidades, intermediadas ou não por psicodélicos, seriam simples produções do sistema nervoso do viajante, nada mais.

A depender da dose do psicodélico tomado, psiconautas veem coisas e seres com intensa sensação de concretude, o que se nomeou como "qualidade noética" da experiência vivida, não raro descrita como mística. A droga daria acesso a outros domínios da existência, mais verdadeiros, se não divinos (há quem chame psicodélicos de enteógenos, não apenas "manifestadores da mente", mas da "divindade interior").

Sem desmerecer essa moldura místico-religiosa, ela parece desnecessária para quem não carrega tal predisposição, como ateus e agnósticos. Ou, numa hipótese mais benevolente, ela seria pelo menos incompleta, como defende Peter Sjöstedt-Hughes (PSH, para encurtar) no artigo "Sobre a Necessidade da Metafísica em Terapia e Pesquisa Psicodélica", publicado em 31 de março no periódico Frontiers in Psychology.

O filósofo foi além da constatação de que algumas experiências psicodélicas não se revestem, subjetivamente, de uma qualidade mística; mesmo a sensação oceânica de pertencer a uma unidade maior que o indivíduo e seu ego pode impor-se como prazer estético, transcendente sem ser místico, espiritual sem soar religioso.

PSH considera que, na terapia apoiada por psicodélicos (TAP) ora reativada em testes clínicos, a fase de integração após sessões de dosagem seria mais produtiva se o paciente pudesse fazer sentido do que viveu usando também as ferramentas da filosofia. Existe, afinal, uma longa história de reflexão organizada sobre crenças e modelos acerca do que a mente humana intui existir além dos sentidos usuais.

Para isso, ele formulou um questionário com 40 afirmações sobre as quais a pessoa deve posicionar-se numa escala de sete pontos, entre discordância e concordância. São frases como "Deus é o universo" (panteísmo), "O universo como um todo tem sua própria atividade mental" (cosmopsiquismo), "O físico e o mental são dois aspectos de uma mesma substância fundamental" (monismo neutro), ou "A atividade mental não é o mesmo que atividade cerebral, mas emerge dela" (emergentismo).

Seis linhas de texto em inglês
Respostas de questionário MMQ, de Peter-Sjöstedt-Hughes - Reprodução

Acima vai uma amostra do formulário, batizado como Questionário de Matriz Metafísica (MMQ, em inglês), com algumas respostas em negrito. Posso testemunhar que pareceu bem mais interessante de responder que o Questionário de Experiência Mística (MEQ), escala de 30 questões usada em testes clínicos para graduar a intensidade mística da viagem, que um célebre estudo de 2006 na Universidade Johns Hopkins correlacionou com benefícios da psilocibina.

Em vista das 40 respostas enviadas, PSH comentou por email: "É particularmente interessante que você parece ter uma crença emergentista, mas com alguma simpatia pelo monismo neutro". E lançou a semente de reflexão: "Pergunto-me se você acredita que o cérebro seja necessário para vida mental [mentality], ou se poderia aceitar formas básicas de vida mental em, digamos, bactérias".

Respondi que não iria até o ponto de admitir vida mental em bactérias. Quem sabe alguma forma de senciência, contudo? É o termo que usaria para qualificar o contínuo evolucionista da capacidade de sentir em diferentes organismos, de modo a contornar a falaciosa separação categórica entre humanos racionais, conscientes, e o restante da natureza viva, quando muito intuitiva, sem autopercepção –e olhe lá.

As ideias e propostas do filósofo de Exeter, cidade que sedia a conferência psicodélica Breaking Convention de quinta a sábado (20 a 22), fizeram pensar que o MMQ poderia ser útil também fora da integração terapêutica. Por exemplo, como meio para aferir mudanças em crenças que psicodélicos supostamente induzem, viajantes ateus que se tornam crentes e assim por diante. O filósofo admite esse uso, mas com ressalvas.

"O MMQ no artigo da Frontiers foi proposto para a fase final de integração. No entanto, poderia ser empregado antes e, possivelmente, durante a sessão de dosagem [trip session]. Sou um pouco ambivalente sobre usar antes, porque poderia haver acusações de que estaria incutindo [priming] crenças no participante, se isso fosse feito."

E acrescentou: "De todo modo, seria possível aquilatar mudança na crença metafísica se [o MMQ] fosse aplicado –e poderia também mostrar a potência, na sessão de viagem, da ‘qualidade noética’ de que fala [William] James".

A sensação intensa de realidade que acompanha experiências psicodélicas constitui, de fato, seu elemento mais perturbador. Pode não ser suficiente para converter ateus, mas os deixa com pulgas atrás da orelha. De onde provêm aquelas coisas nunca vistas, que parecem apaziguar a mente sem explicar nada de fato, apenas propiciando lampejos inefáveis, impossíveis de articular em palavras?

Certas imagens, emoções e encontros da viagem psicodélica brotam com certeza da memória, do inconsciente e de traumas vividos pelo psiconauta. Outros permanecem misteriosos, e há quem proponha que emanam do inconsciente coletivo de Carl Jung, ou quem sabe por telepatia de seres alienígenas. Mas existe também uma proposta teórica exótica para explicar esses conteúdos desconcertantes: o campo de consciência.

Ilustração de Raphael Egel
Ilustração de Raphael Egel - @liveenlightenment

O modelo aparece num artigo de revisão sobre ayahuasca que tem como co-autor um neurocientista psicodélico respeitado, Ben Sessa. Com Edward James, Joachim Keppler e Thomas Robertshaw ele alega, no periódico Human Psychopharmacology, apoiar-se na hipótese de campo de ponto zero (ZPF, em inglês; zero condição de explicar aqui, sem trocadilho nem competência) para propor uma explicação alternativa da fenomenologia psicodélica.

À luz da hipótese do campo de ponto zero, eles sugerem que a DMT e a ayahuasca modificam as características receptoras do cérebro, permitindo que a unidade receptora entre em ressonância com um conjunto mais amplo de modos ZPF e acessem um espectro mais abrangente da paleta fenomenológica oferecida pela ZPF. Em outras palavras, um efeito importante dos psicodélicos seria abrir o filtro ZPF, fazendo o sujeito entrar em contato com uma espécie de mentalidade difusa no cosmos, o campo da consciência.

Dessa perspectiva, escrevem, seria concebível que a ZPF, "respeitando todas as leis da física", possa ser explorada como um canal de comunicação direta entre seres conscientes, desde que tais seres sejam dotados de uma unidade receptora altamente sensível, que lhes permita ler estados de informação de outras entidades. Tais condições seriam satisfeitas sob efeito de DMT ou ayahuasca, que abririam vias usualmente inacessíveis durante a operação normal do cérebro.

"Tal descrição geral é consistente com interpretações dessas experiências nas tradições contemplativas orientais, que sugerem uma fonte unificada de matéria e consciência e que a consciência pervade o universo", afirmam. Ou seja, os autores da revisão mergulham fundo no campo metafísico que o MMQ de Sjöstedt Hughes apontaria como cosmopsiquismo e monismo, embora alegando que isso não seja incompatível com a física.

Vai saber. Ser compatível não quer dizer que seja provável, testável ou, menos ainda, falseável. Mas Ben Sessa &cia parecem acreditar que a neurociência vai chegar lá:

"Ainda que conceitualmente intrigante e comparativamente coerente, esses modelos ainda não foram verificados em estudos controlados e bem-desenhados, pois estudos neurocientíficos até agora só produziram observações superficiais a respeito de ligações com receptores e alterações da função cerebral", concedem.

"A fenomenologia da experiência com DMT e ayahuasca conduz a questões sobre natureza da consciência, realidade material de consenso e mecanismos na medicina [terapêutica]", assinalam. "Até que se alcance consenso geral na comunidade científica apoiado em sólida base de testes empíricos de modelos, a natureza fundamental do mecanismo de ação da DMT e da ayahuasca permanecerá inexplicada."

Resumindo, a pedalada mística que impele a ciência psicodélica para a vizinhança da religião é precária e arrisca abandonar na beira da estrada quem não tem fé. Mais seguro e objetivo é navegar na matriz consagrada da metafísica.

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Não deixe de ver também na Folha as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

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