Voltaire de Souza

Crônicas da vida louca

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Voltaire de Souza

De uma vez por todas

Em datas comemorativas, evitar discussões em família é preocupação de todos

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Datas. Festas. Comemorações.

Na mansão dos Torres de Castro, o momento era de homenagem.

--A vovó Henriqueta. Faz cem anos.

Era uma ocasião para reunir toda a família.

--Data muito bonita... 1922.

--E em setembro, imagine.

--Dia 7?

--Por aí. O registro de nascimento não é muito legível.

--Bom, tanto faz.

--Cem anos.

--E lúcida. Impressionante.

--Fazer uma grande festa.

--Claro.

O dr. Ciryllo era advogado e, sem dúvida, o membro mais sensato da família.

--Só uma coisa, pessoal...

--O quê?

--É bom a gente não conversar de política.

--Ué. Você não vota no Bolsonaro?

--Bem... mas, sabe... a ala jovem... hehe.

Uma neta de Ciryllo acabava de se mudar para a casa do rapper K-Pawn.

--Isso é nome de gente?

--Será que eles vêm para o aniversário?

--Pois então... e tem mais.

O dr. Ciryllo se preocupava com outra ala da família.

--O pessoal de Tibagi...

--O que é que tem?

--O tio Randolfo é capaz de vir armado.

--E a mulher dele deixa?

--A Ninoca? O pai dela é general do Exército...

As instruções foram divulgadas em detalhe pelo whatsapp da família.

Bolos. Quitutes. Delícias.

Dona Henriqueta assistia sentada à comovente reunião.

O bate-boca começou em torno de uma bandeja de croquetes.

--Tira a mão daí, espertinho. Aqui a ladroagem não tem vez.

--Mas eu sou tão convidado quanto o senhor.

--Isso, meu rapaz, quando te soltarem do zoológico.

Dona Henriqueta tentava ouvir a discussão.

--Que foi que ele disse? Que foi?

O dr. Ciryllo tentou disfarçar.

--Coisas do tio Randolfo... sabe como ele é.

--Hum. Chama ele para conversar comigo.

O poderoso fazendeiro se aproximou da matriarca.

--Queria falar comigo, vó Henriqueta?

--Trouxe que tipo de arma, meu filho?

--Só essa semiautomática... e a 45.

--Deixa eu ver.

O pecuarista cedeu a um momento de vaidade.

--Novinha.

Dona Henriqueta sopesou nas mãos ainda rijas o artefato fatal.

--Vamos estrear essa porcaria.

Ela lançou rajadas a esmo ao longo do salão.

A contagem dos mortos e feridos ainda não terminou.

--Pena que eu acertei também na parede dos pratos de porcelana.

Peças de uma coleção imperial.

--Mas dei cabo de pelo menos uma dúzia de vagabundos.

Ela suspira.

--Brasileiro não presta, Randolfo.

Dona Henriqueta descansou a semiautomática no colo.

--Hora de decretar a nossa independência dessa corja toda.

Cem anos podem trazer experiência e sabedoria.

Mas a vida humana, por vezes, é curta para tanta contradição.

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