Descrição de chapéu Energia Limpa

Fusão nuclear é pop e potencialmente transformadora, mas ainda distante como fonte de energia

Pesquisador de laboratório americano que atingiu a ignição 5 vezes diz que há vários obstáculos técnicos a serem superados

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São Paulo

Agora que energia limpa é pop, por todo canto você acha declarações de avanços sobre o tema. Mas, entre todas as evoluções —as reais—, uma teve um brilho próprio: a fusão nuclear, forma de obtenção de energia que, sob o domínio humano, é citada como de potencial revolucionário. Afinal, estamos falando da reação que mantém o Sol ardendo sobre nossas cabeças.

O fato é que a fusão tem saído de um campo quase ficcional para uma realidade, marcando presença em jornais e em revistas científicas. Porém, tudo indica, uma realidade ainda um tanto distante.

De forma resumida, a fusão nuclear ocorre quando dois núcleos de hidrogênio se fundem e formam um átomo de hélio. Isso só é possível quando as partículas estão a milhões de graus Celsius —em forma de plasma, o quarto estado da matéria—, sob alta pressão. Quando o hélio se forma, o resultado são enormes quantidades de energia, o que poderia servir à humanidade.

No Laboratório Nacional Lawrence Livermore, a câmara-alvo onde fica o hohlraum atingido por pulsos de laser - Damien Jemison/Laboratório Nacional Lawrence Livermore

Curiosamente, o domínio da fusão sempre foi pensado como um processo que poderia mudar o mundo, mas, ao mesmo tempo, algo para o futuro. Pesquisadores ouvidos pela Folha contam que, de 30 a 40 anos atrás, já se falava em fusão para dali 30 ou 40 anos.

A realidade prática e comercial distante da fusão implica em outro ponto: crise do clima. Resumidamente, não se pode contar com ela para conter esta crise neste século. O que continuamos a emitir vai afetar o planeta no longo prazo. Então, em teoria, pouco adianta termos, com a concretização da fusão, uma fonte enorme de energia limpa em 2040, 2050, 2060, pois o planeta já terá "assinado" um contrato de alguns graus celsius e, consequentemente, de diversas catástrofes ambientais constantes —como já vemos.

Mesmo sem poder ajudar no controle da crise climática que temos em mãos, é inegável que os últimos anos viram uma importante evolução relacionada a essa tecnologia.

Cientistas finalmente conseguiram, a partir da fusão, gerar mais energia em relação à que foi gasta para colocar o processo em andamento —algo básico ao se pensar que a ideia é dar energia para as pessoas.

Mas tal evolução carrega uma estrelinha, um asterisco: o ganho líquido de energia não ocorreu de forma plena. A geração de mais energia do que foi consumida leva em conta somente uma parte do processo.

O LLNL (Laboratório Nacional Lawrence Livermore), na Califórnia (EUA), responsável pelo importante feito, disse que a quantidade de energia necessária para disparar os poderosos 192 feixes de laser que dão início à reação de fusão é maior do que a energia que foi gerada. (Essa é uma das formas de obter a fusão, feita a partir do que chamam de confinamento inercial; a outra, com uso de máquinas chamadas tokamaks, faz uso de confinamento magnético.)

Portanto, não se trata de um ganho líquido prático. O site do laboratório aponta quão maior é o gasto de energia para gerar a fusão: "[...] a energia consumida pela instalação de laser NIF [National Ignition Facility], é tipicamente cem vezes maior", em relação à energia que, de fato, incide sobre o alvo que gerará a fusão.

Independentemente disso, o laboratório realizou a façanha. Conseguiu e repetiu, o que é essencial para confirmar achados científicos.

Art Pak, pesquisador do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, afirmou à Folha que a ignição —segundo o LLNL, chegar à ignição significa produzir mais energia do que é entregue ao alvo— já foi atingida, ao todo, cinco vezes.

A primeira vez ocorreu em 12 de dezembro de 2022; outras três, de 30 de julho de 2023 até 30 de outubro do mesmo ano.

A mais recente foi em 12 de fevereiro deste ano, que chama a atenção pela quantidade de energia gerada em relação aos outros casos. Neste caso, os cientistas do LLNL jogaram 2.2 MJ (megajoules) sobre o alvo —uma cápsula onde está o combustível— e conseguiram de volta 5.2 MJ, ou seja, mais do que o dobro da energia aplicada, algo consideravelmente superior aos testes anteriores.

"Estamos nos preparando para o próximo experimento de energia a laser de 2,2 MJ, que acontecerá no final da primavera ou início do verão [no Hemisfério Norte]. Tentaremos aumentar ainda mais o desempenho modificando o alvo para aumentar a compressão", diz o pesquisador do LLNL. "Cada repetição traz grande satisfação, pois, em pouco mais de um ano, passamos de demonstrar que a ignição por fusão é possível para mostrar que podemos fazê-lo consistentemente."

Vinícius Njaim Duarte, pesquisador do Laboratório de Física de Plasma da Universidade de Princeton, nos EUA, chama de marco científico e tecnológico o que foi feito no LLNL.

Mas há o "mas". "Se você é agnóstico com respeito a toda a parafernália em volta e olha só para a cápsula, sim, você fez chegar 2 [MJ], produziu 3 [MJ, no primeiro experimento]. Mas, se você olha para tudo o que vem antes, o laser em si não é tão eficiente. Não é diminuindo o feito. É incrível", diz Duarte.

Isso ainda mostra a distância da fusão para uma realidade comercial.

"A resposta é desconfortável para quem quer uma resposta otimista. Tem havido avanços pequenos, porém significativos. Mas estamos distantes da factibilidade", afirma Ildo Sauer, vice-diretor do IEE (Instituto de Energia e Ambiente), da USP, com doutorado em engenharia nuclear pelo MIT e ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras.

Como Sauer vê a tecnologia ainda como incipiente, para ele é até mesmo difícil imaginar as possíveis posições que ela pode ocupar na realidade energética futura.

Ao mesmo tempo em que acredito que a façanha do LLNL tenha evoluído a possibilidade de energia comercial a partir da fusão, ainda é um tremendo desafio, com vários obstáculos técnicos a superar

Art Pak

pesquisador do Laboratório Nacional Lawrence Livermore

Já Renato Machado Cotta, membro da ABC (Academia Brasileira de Ciências), professor da COPPE/UFRJ e consultor técnico da diretoria geral de desenvolvimento nuclear e tecnológico da Marinha do Brasil, enxerga na fusão a possibilidade futura de uma fonte de energia de base, assim como são hoje a energia nuclear, em alguns países, a hidroeletricidade no país, e o gás natural —com a diferença de a fusão ser limpa.

"Com combustível mais abundante, com um impacto ambiental reduzido e confinado em uma área relativamente pequena. Então é interessante", diz, sobre a fusão, Cotta, que é ex-presidente da CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear).

Cotta ressalta a importância, porém, de o pensamento ser direcionado para mosaicos energéticos, com diversas fontes contribuindo para as matrizes energéticas, citando, por exemplo, o também limpo "hidrogênio, que se fala tanto; verde, rosa, cor de abóbora", brinca o pesquisador.

Sauer, por sua vez, defende que o problema da humanidade não é tecnológico, falta de fontes de energia ou quantidades. "As fontes atualmente existentes podem atender com sobra toda a demanda hoje e futura", diz, citando as energias solar, eólica e hidráulica.

"A ciência é sólida", afirma Sauer, em relação à fusão. "Mas a tecnologia, a sua inserção e as incógnitas superam em muito qualquer rasgo de certeza que se tenha."

Se há cuidado de um lado, há investimentos de bilhões, envolvimento de grandes nomes e animação de outro.

Recentemente, a Helion Energy, empresa que tem como principal investidor e presidente do conselho Sam Altman, CEO da criadora do ChatGPT, prometeu ter pronta, em 2028, a primeira usina de energia à fusão nuclear. A promessa veio junto com um primeiro cliente: a Microsoft.

Pak, do LLNL, um dos responsáveis pelo feito de ganho quase-líquido de energia, é consideravelmente mais cuidadoso com prazos.

"Ao mesmo tempo em que acredito que a façanha do LLNL tenha evoluído a possibilidade de energia comercial a partir da fusão, ainda é um tremendo desafio, com vários obstáculos técnicos a superar", afirma Pak. "Há tantas variáveis que é difícil estimar quanto tempo levará. No entanto, quanto mais esforço e cooperação mundial colocarmos nisso, como espécie, mais cedo acontecerá."

"Vá rápido e quebre coisas" era o lema da empresa Meta (antigo Facebook) e de seu fundador, Mark Zuckerberg, até as coisas começarem a sair do controle.

O espírito da ideia parece continuar presente no Vale do Silício, lar do ChatGPT. Altman, em uma publicação de 2021, diz: "Vá rápido. Lentidão em qualquer lugar justifica lentidão em todo lugar. [...] Essa semana em vez da próxima. Hoje em vez de amanhã".

Resta saber quando ocorrerá e qual será a reação resultante do choque entre a tecnologia da fusão nuclear e as filosofias empresariais do Vale do Silício.

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