Ailton Krenak

Escritor e líder indígena. Autor de 'Ideias para Adiar o Fim do Mundo' e 'Futuro Ancestral'

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Assalto de território guarani-kaiowá escancara injustiça do marco temporal

Ao longo da história, Estado negligenciou direitos do povo indígena, hoje martirizado por tese jurídica inconstitucional

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Quem assistiu ao filme "Martírio" (2016), codirigido por Vincent Carelli? Com ele, retornamos ao princípio da grande marcha de retomada dos territórios sagrados guarani-kaiowás.

Carelli registrou o nascedouro do movimento de articulação, resistência e retomada desse povo na década de 1980. Vinte anos mais tarde, tomado pelos relatos de sucessivos massacres, Carelli buscou as origens desse genocídio, um conflito de forças desproporcionais: a insurgência pacífica e obstinada dos despossuídos guarani-kaiowás frente ao poderoso aparato do agronegócio. "Martírio" desvela a trágica história dos últimos cem anos desse povo na fronteira do Brasil com o Paraguai.

Centenas de homens, mulheres e jovens do povo guarani-kaiowá do Mato Grosso do Sul podem nos contar mais sobre essa região do nosso país que foi ocupada desde a Guerra do Paraguai, no final do Império.

O Estado brasileiro negligenciou obscenamente os direitos desse povo e não demarcou suas terras na Primeira República, quando devia e podia. Nessa altura, os indígenas já demandavam havia um século o reconhecimento de seus tekoás, como é nomeado em seu idioma o local de uma aldeia tradicional, um conjunto de pessoas convivendo em sítios de vida abundante de água, plantas medicinais e material vegetal necessários à sua economia e à sua cultura.

O modo de vida guarani-kaiowá, em que a vida espiritual tem um lugar central, não é compatível com a ocupação privada da terra e nem mesmo com a ideia da mesma como mercadoria.

O governo, em vez de reconhecer esses territórios, permitiu que esses campos naturais de floração de erva-mate, essa planta tão sagrada para os kaiowás, fossem invadidos por grandes fazendas, como a Companhia Matte Larangeira, que ocupou sem escrúpulos as terras e subjugou centenas de famílias ao trabalho escravo na produção do mate para a indústria. Trata-se de uma explícita apropriação privada de bens públicos, uma vez que as terras ocupadas por indígenas são consideradas patrimônio da União.

Nenhuma ação foi feita contra esse assalto secular, muito pelo contrário: Getúlio Vargas fez ampla concessão de terras onde veio a ser o Mato Grosso, e colonos do Sul e do Sudeste foram carreados pelo próprio governo para ocupá-las. Os indígenas, por sua vez, foram confinados em microrreservas; suas famílias, separadas e isoladas. Soja e cana-de-açúcar tomaram os campos nos últimos 80 anos, e o agronegócio converteu a paisagem em monocultura.

O caso guarani-kaiowá é um exemplo perfeito da injustiça do famigerado "marco temporal", em que os indígenas, desapropriados de seus territórios pelo próprio Estado brasileiro —tudo amplamente documentado por agências oficiais—, são mais uma vez, enquanto esperam reparação pela injustiça, martirizados por uma tese jurídica inconstitucional.

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