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Livro mostra único depoimento de uma mulher sobre Guerra do Paraguai

Projeto foi concebido por José Murilo de Carvalho, que morreu em agosto, e concluído por Francisco Doratioto

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Naief Haddad
Naief Haddad

Repórter especial da Folha

[RESUMO] Obra recém-lançada, que havia sido editada uma única vez, há mais de 130 anos, apresenta o depoimento da francesa radicada no Paraguai Dorothée Duprat de Lasserre, considerada traidora pelas tropas do ditador Francisco Solano López, obrigada a marchar por meses com milhares de outras mulheres e encarcerada em uma espécie de campo de concentração no país.

Embora não se considerasse um especialista em Guerra do Paraguai, o historiador José Murilo de Carvalho, que morreu em agosto passado, dedicou boa parte dos seus últimos anos de vida a leituras sobre o conflito que movimentou a América do Sul de 1864 a 1870.

Em 2019, ele lançou "Jovita Alves Feitosa: Voluntária da Pátria, Voluntária da Morte", primeiro livro da Chão, editora voltada a registros históricos e memórias. Carvalho contava a saga da cearense de 17 anos que cortou os cabelos e se vestiu com trajes masculinos para poder participar das batalhas. O Ministério da Guerra proibiu Jovita de seguir para os combates, o que não impediu que ela se tornasse uma celebridade associada a uma causa de projeção nacional.

Antônia Alves Feitosa, a Jovita, que foi voluntária do Exército brasileiro para lutar na Guerra do Paraguai - Reprodução

Depois de publicado o livro, Marta Garcia, editora da Chão, disse ao historiador que teria interesse em novos projetos sugeridos por ele, tivessem ou não relação com a guerra. Como esse episódio do século 19 continuava sob seu radar, Carvalho se recordou do relato de Dorothée Duprat de Lasserre.

Era uma lembrança preciosa do ponto de vista historiográfico, já que se trata do único depoimento de que se tem notícia de uma mulher que viveu o conflito. Francesa radicada no Paraguai, Dorothée não foi oprimida pelos países inimigos, Brasil, Argentina e Uruguai. Sofreu, na verdade, sob a mão impiedosa do paraguaio Francisco Solano López. Ela era uma das "destinadas", nome dado às mulheres que viviam no país e eram consideradas traidoras pelas tropas do ditador.

Sob a escolta de soldados, um grupo de 2.800 prisioneiros de guerra formado pelas "destinadas", além de crianças e idosos, caminhou por meses durante o verão úmido do Paraguai. Muitas morreram ao longo do trajeto; as demais foram levadas a um local chamado Espadim, onde se formou uma espécie de campo de concentração.

O Exército brasileiro libertou essas mulheres em dezembro de 1869 e, nas semanas seguintes, Dorothée escreveu seu relato, um retrato do sofrimento da população civil sob os delírios e a truculência de Solano López.

José Murilo de Carvalho propôs que a editora publicasse o depoimento, que havia saído uma única vez no Brasil, em 1893, ou seja, há mais de 130 anos. Caberia ao historiador organizar a edição, com um texto de apoio, que traria novas pesquisas, além da contextualização.

Porém, em 2020, veio a pandemia. "Com a Covid, os arquivos no Brasil fecharam, e o José Murilo sentia a necessidade de fazer pesquisas presenciais. Além disso, queria consultar arquivos paraguaios e dizia não ter contatos no país. Ele não faria um posfácio qualquer", afirma a editora Marta Garcia.

Carvalho, então, sugeriu à Chão que o projeto fosse assumido por Francisco Doratioto, professor de história da UnB (Universidade de Brasília) e autor de "Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai", livro apontado por Boris Fausto como "um marco de nossa historiografia contemporânea" em resenha publicada na Folha.

Com a organização de Doratioto, "Memórias de Dorothée Duprat de Lasserre: Relato de uma Prisioneira na Guerra do Paraguai (1870)" chegou, enfim, às livrarias no final do semestre do ano passado.

A francesa radicada no Paraguai Dorothée Duprat de Lasserre em foto da década de 1880 - Archivo Literario Municipal de Chivilcoy

Segundo o historiador da UnB, o conflito provocou, no mínimo, 240 mil mortes, considerando todos os países participantes. Como em qualquer grande guerra, os números de vítimas espantam, mas não causam a comoção esperada. Sendo uma visão bastante pessoal de uma mulher tão atenta quanto sensível, a tragédia narrada por Dorothée se distancia do impacto frio das contas de somar e multiplicar.

Seu depoimento se estende do início de 1868, quando veio a determinação de Solano López para que todos os franceses que viviam no Paraguai se alistassem, a dezembro de 1869, quando ela e outras centenas de "destinadas" foram libertadas pelas tropas brasileiras. Nesse meio-tempo, Dorothée, de pouco mais de 20 anos, e sua mãe, na casa dos 40, foram obrigadas a se juntar ao grupo de prisioneiros, que seguiam no sentido inverso das tropas aliadas. Acumulavam cansaço e doenças, que levavam à inanição.

Sobre a situação em Espadim, ela descreveu: "Nos fazia muita falta a carne de burro; algumas famílias comeram cães, sapos, serpentes; os meninos tornaram-se fracos como esqueletos, mas a mortandade seguia levando crianças e velhas. Sobretudo os dias de chuva eram fatais: amanheciam hirtos, gelados, esses pobres que ainda ontem buscavam seu sustento".

Ainda em Espadim, a francesa, à procura de comida, se viu perdida no matagal: "Quando escureceu, enlouqueci de dor pensando nas aflições que minha mãe teria não nos vendo voltar. Pus-me a chorar e a gritar sem juízo".

De acordo com Doratioto, "a maior parte das mortes na guerra —quer do lado paraguaio, quer do lado aliado, principalmente brasileiro— foi causada por doenças e exaustão física, não por combates". As "destinadas", que não recebiam comida dos soldados que as vigiavam, são um símbolo dessa realidade. "Mulheres, como Dorothée, com uma situação social mais privilegiada, ainda podiam comprar comida, trocar joias por um quilo de carne, coisas assim. Mas tudo isso acabou, e a miséria foi se instalando".

Uma dúvida surge nas primeiras páginas do depoimento de Dorothée: havia razão para que o Paraguai desconfiasse da lealdade dela e da sua família ao governo do país?

"Eles foram presos em 1868 por uma suposta conspiração contra Solano López, uma conspiração da qual teriam participado cerca de 2.000 pessoas, quase toda a elite de Assunção. Não há lógica nisso e também não existe um documento que mostre que isso tivesse uma base real", afirma o historiador. Em outras palavras, as sucessivas derrotas paraguaias alimentavam as paranoias do ditador, que via conspirações por todos os lados.

No posfácio, Doratioto explica como Solano López assumiu o poder e como sua imagem sofreu alterações ao longo dos séculos 19 e 20. Apresenta ainda as motivações para a guerra e lembra como as mulheres, brasileiras e paraguaias, atuaram no conflito. O mais interessante, porém, está nas revelações sobre o paradeiro de Dorothée depois de ser libertada, uma pesquisa que tomou quase um ano do historiador.

Prisioneiros de guerra no acampamento de San Fernando retratados no 'Álbum da Guerra do Paraguai', de 1893 - Biblioteca Nacional do Paraguai/Divulgação

Ela começou uma outra vida em Chivilcoy, cidade a cerca de 150 km de Buenos Aires, onde se casou novamente —o primeiro marido havia sido morto pelos homens de Solano López. Além de atuar como professora, escritora e jornalista, participou de campanhas beneficentes, como o combate à varíola, e ajudou a fundar uma biblioteca.

Depois de enfrentar o inferno nas matas paraguaias, construiu uma trajetória admirável na Argentina e morreu aos 87 anos em 1932. É inevitável a constatação: Dorothée renderia um filme e tanto.

Erramos: o texto foi alterado

Por erro de edição, o resumo da reportagem informou que a francesa Dorothée Duprat de Lasserre estava radicada no Uruguai em vez do Paraguai.

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