Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

Racismo e antirracismo

Tem sido frequente a indignação em situações de racismo pelas próprias vítimas

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O aniversário da Abolição é daqui a uma semana, mas o racismo não carece de data festiva. É cotidiano. Depois de negaceio secular, sua admissão é ainda limitada. Muita gente ilustrada ainda se pendura na tese da "herança": o racismo como sobra do passado, que o avanço civilizacional superaria. O autoengano é delatado faz tempo, mas a desilusão só tem prosperado na base dos sopapos dos anos Bolsonaro.

A nova autoimagem do Brasil —desigual, violento, racista— não se fixou de todo. Nem para todo mundo. Alterações de percepção e de costumes tendem a começar em pequenos círculos da elite cultural, antes de se espalhar por suas irmãs —social, política, econômica— e, aos poucos, se infiltrar na sociedade inteira.

Mudança incompleta porque há resistências. A explícita é dos que combatem a nova sensibilidade como exagero ou bobagem. A velada é dos que a contornam com um bom-mocismo protocolar. O vereador paulistano Camilo Cristófaro, que de cristão só tem um pedaço do nome, adotou o segundo alvitre.

No conforto caseiro, comentou: "Não lavar a calçada...é coisa de preto, né?" Opinião da porta para dentro, onde coração e boca coincidem e se escancaram. Não era para ir a público. Mas se ouviu no microfone da Câmara. Cristófaro é prova de carne, osso e língua solta de que a igualdade entre os humanos está longe de ponto pacífico nos estratos altos.

Mas mudanças de costumes não acontecem só de cima para baixo. Ocorre também o inverso, a pressão dos estratos baixos pode alterar comportamentos da turma de cima. A legislação trabalhista, escassamente celebrada no domingo passado, atesta a eficácia do procedimento. O antirracismo popular vai indo por essa trilha. Tem sido frequente a indignação em situações cotidianas de racismo, não por brancos bem-intencionados, mas pelas próprias vítimas. E com consequências.

Isso se viu em episódio simultâneo ao de Cristófaro, mas, em vez de racismo doméstico, foi um racismo de importação. A Europa coalha de gente que quer ver pelas costas, e fora de suas costas, quem tem outra cor. Agnés Vajda trouxe a intolerância húngara para o metrô de São Paulo. Na altura da estação Ana Rosa, incomodou-se com as madeixas de Wélica Ribeiro, vizinha de assento, a quem disse: "Toma cuidado com o seu cabelo porque está próximo do meu rosto e pode me causar doença".

A resposta mostrou o quanto a hierarquização racial se tornou inaceitável para setores médios e baixos - ao menos para a parte usuária do metrô. A ofendida, seu irmão e vários passageiros de bate-pronto chamaram o ato pelo seu nome: racismo. Filmaram e atribuíram ao "incidente" o status de caso de polícia.

Os dois casos documentam tendências contrárias e potentes: de um lado, a persistência tangível do racismo, de outro, a disseminação do antirracismo em setores altos e baixos da estrutura social.

Ambas encontram guarida na política nacional. No governo, nega-se o racismo e se reafirmam as desigualdades raciais. No extremo oposto, políticos antirracistas conformam um nicho miúdo.

A maioria dos profissionais da área, contudo, se situa a meio caminho, no antirracismo protocolar que acoberta um racismo enrustido. Por isso, pouco lhes incomoda a ausência de candidatos negros à presidência e à vice-presidência da República. Enquanto o problema ebule na sociedade em direções opostas e potencialmente conflitivas, a política graúda finge que ele nem mesmo existe.

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